


A história oral em Kotikô

(Continuação)
O ancião que mais falou durante a roda de conversa na aldeia Kotikô, Seiakiän, testemunhou os momentos mais significativos da história recente: o primeiro contato, a ida para o Xingu e a volta para parte do território Panará. Para o momento de contar essa história, ele se pintou com o pigmento preto que sai do jenipapo e com o vermelho que sai do urucun, como é tradição, principalmente nos momentos de comemoração ou desafio.


Algumas mulheres também apresentavam pintura corporal. Aos poucos, todos foram se acomodando na casa tradicional escolhida para sediar a roda de conversa: as mulheres Pakiê Panará, Ipüti Panará e Maria Kaiabi Panará (cacica da Kotikô), além dos homens Seiakiän Panará e Parantã Panará. Os tradutores foram Perankõ Panará e Kuká Panará.
Os tapuntun e as tuatun contaram que as condições do Rio Iriri já não eram as mesmas do passado, pois a água ficava sempre suja com a proximidade das fazendas e do gado, e o leito estava cada vez mais seco, dificultando a passagem de barcos. O volume de peixes caía a cada ano. Contaram também que o Rio Peixoto, que margeava as aldeias originais, na região onde hoje ficam as cidades de Matupá (MT) e Peixoto de Azevedo (MT), era muito limpo antes do desmatamento e do garimpo. A pesca de peixes grandes se fazia usando flechas. A terra dava muitas frutas e a roça produzia com fartura. Quando foram levados forçadamente para o Parque Indígena do Xingu (PIX), os Panará sofreram bastante, porque o Rio Xingu tinha características diferentes do seu afluente Iriri, e a terra não produzia tanto. A volta para parte do território original foi, por isso, muito comemorada. Durante a roda de conversa eles disseram que hoje quando chega a época das chuvas, a água do Iriri fica suja, com muito lixo, mas o rio ainda é a única fonte para beber, pescar e amolecer a mandioca. “As autoridades têm que respeitar e proteger todos os territórios e os rios”, afirmaram, com o desejo de que essa mensagem chegue principalmente aos fazendeiros. “O rio limpo seria bom para eles também”, comentaram.
Resta aos Panará driblar por conta própria as dificuldades impostas pelas condições do Rio Iriri. Uma delas vem das mudanças observadas durante o Timbó, uma tradição indígena, não só Panará, que a equipe da SEC (o repórter cinematográfico Marcos Botelho Jr. e a jornalista Bruna Mozer) também documentou no mês de setembro de 2024.

Os homens Panará, em um ritual que começa no dia anterior, com cantos e danças, fazem a retirada do cipó chamado Timbó. O cipó é típico das florestas tropicais e libera uma toxina quando espremido e em contato com a água. Com ele, são feitos inúmeros feixes, levados para as margens do Rio Iriri ou para uma lagoa, como ocorreu em setembro. No dia seguinte, em ritmo e cadência acompanhados por cantos, os homens da aldeia usam pedaços de madeira para bater nos feixes. A cada intervalo na sequência de batidas, esses feixes de Timbó são mergulhados no rio; um processo repetido várias vezes, até que a espuma formada pela toxina liberada pelo Timbó seja suficiente para trazer muitos peixes à tona e assim facilitar a pesca. Para além da pesca, o Timbó é uma tradição que envolve toda a aldeia. Enquanto os homens cumprem a função de coleta do cipó, produção dos arcos e flechas e da própria pescaria, as mulheres preparam beiju (pão feito com farinha de mandioca) à beira do rio. Quando começa a pesca, cabe a elas cozinhar os peixes na fogueira e servi-los para as famílias e amigos que se dividem em diversos grupos à margem da água. Os pesquisadores da Unicamp fizeram medições e identificação de espécies como parte de um estudo proposto pelo pesquisador colaborador do Laboratório de Química Ambiental (LQA) Theodore Burdick Henry.
O número e a variedade de peixes durante o Timbó são um parâmetro importante para compreender as mudanças na qualidade da água.
Ao fim da roda de conversa, os tapuntun e as tuatun chamaram a atenção para a importância do trabalho da equipe de pesquisa, tanto ao analisar a água, quanto ao divulgar os problemas que as aldeias estavam enfrentando. “O branco precisa saber que isso está acontecendo”, disse um deles ao lembrar que a vida dos rios, dos peixes, dos animais e da floresta influencia tudo o que acontece em torno, porque tudo está interligado. A necessidade de preservação, portanto, não é apenas uma demanda dos indígenas, afirmação repetida várias vezes, principalmente entre as mulheres. Muitas ali eram crianças quando saíram do Parque Indígena do Xingu (PIX) e retornaram para a terra Panará, testemunhando a alegria do reencontro com a região onde hoje ficam as sete aldeias. Quando finalmente se estabeleceram em um lugar bom para viver, começaram a ter mais filhos. Hoje, porém, as mulheres anciãs estavam preocupadas, porque a morte de peixes (referência à mortandade em 2017) mostrava que algo muito grave estava acontecendo com o Rio Iriri.
Depois de mais de uma hora de entrevista, as pesquisadoras agradeceram a contribuição dos Panará e garantiram que manterão as investigações sobre a qualidade da água do Rio Iriri.
Ao sair da casa onde foi realizada a roda de conversa, Montagner pediu a Seiakiän que a levasse para ver a roça nova, uma oportunidade de registrar em imagens esta outra importante tradição da cultura Panará. As roças são plantadas em círculos, com o cultivo de plantas diferentes da borda para o centro do terreno, uma característica que chamou a atenção dos irmãos Vilas Boas durante os sobrevoos da terra Panará, antes do primeiro contato. Tanto as roças quanto as aldeias tinham muitas diferenças entre si e em relação a outras etnias conhecidas até aquele momento. (ARNT, Ricardo, et ali. Panará, A volta dos índios gigantes. Instituto Socioambiental. 1998)



A roça nova da aldeia Kotikô ficava em uma área próxima às casas e estava sendo preparada com o corte de pequenas árvores, mas o plantio não havia começado. Nela, foi gravada uma entrevista com Seiakiän, que respondeu em português. Montagner aproveitou o momento e perguntou qual o significado das cicatrizes ou escarificações que muitos Panará, principalmente os mais velhos, trazem no peito. Ela já tinha ouvido dizer que marcavam o sofrimento dos inimigos mortos em batalhas, quando os Panará guerreavam com povos rivais, principalmente os Kaiapó. O ancião confirmou esta tese. Foi possível obter, ainda, outras explicações, já que essas marcas também estampavam o corpo de jovens, mulheres e até crianças no passado, como mostram os registros do repórter fotográfico Pedro Martinelli, publicados no livro Panará, a volta dos índios gigantes. Uma dezena de motivações pode ter gerado esta tradição, como os rituais de passagem da adolescência para a fase adulta, além dos rituais de caça, proteção e defesa. (DENÓFRIO, João Paulo Marra, Entre vivos e mortos: mitologia, xamanismo e feitiçaria nos Panará. Rio de Janeiro, 2024. pp. 319)
A essa altura da conversa com Seiakiän, Perankõ se aproximou e começou a conversar com as pesquisadoras contando que, hoje, os jovens não fazem mais a roça redonda, diferentemente dos antigos, que sabiam exatamente como calcular a circunferência e a posição da roça em relação à mata e à aldeia. Perankõ disse ainda que vinha percebendo muitas mudanças no solo e no tempo, cada vez mais quentes e secos, provocando a perda do plantio, como aconteceu em 2023. Montagner respondeu que, na academia, as condições extremas também são estudadas e têm o nome de mudanças climáticas, provocadas pelo aquecimento global.
Em um diálogo na aldeia Kotikô, observou-se a íntima relação entre a pesquisa científica e a vivência Panará.
A tarde caía e a sensação de que toda aquela conversa deveria ecoar aumentava a responsabilidade pela realização da reportagem, do documentário ou de quaisquer produções audiovisuais e de texto possíveis a partir do que se revelava sobre o ambiente em natureza bruta, ali, tão perto, como testemunha silenciosa do que era falado sobre ela. O fim da tarde também convidava à volta para Guarantã do Norte, de onde sairíamos no dia seguinte para Nänsêpotiti, a maior das sete aldeias. Quando as equipes começaram a se organizar para retornar ao hotel, as mulheres e crianças da aldeia Kotikô, que até então estavam reclusas, saíram das casas tradicionais. Algumas delas interagiram com as equipes, dando nomes Panará para cada integrante. Eu ganhei o nome de Karô; Telma, Pyssypâri; Edilaine, Jôwpôpri; Montagner já havia recebido, em outra visita, o nome de Pôtantê, Zaira, Sacrê e Theodore, Timtim. No dia seguinte, foi a vez do cinegrafista Marcos ganhar o nome Kiänsí, dado pela anciã Piaká. Voltamos para Guarantã do Norte. No horizonte, o pôr do sol pintava o céu de azul e rosa, emoldurado pela silhueta da mata.
Já no hotel, hora de tomar banho, jantar e não demorar muito para dormir. O dia seguinte seria tomado por horas de viagem, possíveis imprevistos, montagem das barracas e ambientação na aldeia Panará Nänsêpotiti, a primeira criada depois da volta do Xingu, onde ficaríamos até domingo.
(Continua …)

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios e Bruna Mozer
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr., Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri, Thiago dos Anjos
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenadora audiovisual: Patrícia Lauretti
Coordenação geral: Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues