

Uma tragédia recente

(Continuação)
A saída para a aldeia Kotikô atrasou um pouco, em função da necessidade de carregar as caminhonetes, que sempre aproveitam o frete para levar produtos diversos, principalmente quando as aldeias recebem visitantes. Antes de pegar estrada, uma parada na loja da Associação Iakiô, em Guarantã do Norte, que vende roupas, acessórios e objetos indígenas. A loja foi aberta recentemente, para incrementar a arrecadação de recursos para o atendimento das inúmeras demandas das sete aldeias Panará.
Em uma caminhonete, além do motorista, estávamos Marcos, Bruno Jungmann – fotógrafo e cinegrafista contratado para a produção audiovisual –, Rayssa e eu. Na outra, estavam Montagner e as demais pesquisadoras. No caminho, a paisagem revelava o avanço do agronegócio em culturas de milho, soja, algodão e gergelim, com áreas de matas entrecortadas pelo plantio e pelo pasto. Cabe aqui ressaltar que “praticamente 90% dos agrotóxicos em circulação no Brasil são aplicados em apenas cinco culturas: soja, milho, algodão, pasto e cana-de-açúcar”, segundo os estudos da pesquisadora da USP Larissa Mies Bombardi, detalhados no livro Agrotóxicos e colonialismo químico, lançado em 2023.
O estudo revela ainda: “É ilustrativo o caso do mancozebe, fungicida com alta toxicidade sobre peixes e animais aquáticos invertebrados, cujo uso cresceu em todo o país, mas que, nos estados do Centro-Oeste (majoritariamente do bioma do Cerrado, berço das bacias hidrográficas do país), teve um crescimento de 4.740% e, na região Norte, que congrega cerca de um quinto da água potável do planeta, de 5.831%.” (BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxico e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023, pp. 25, 73-74)
Próximo da terra indígena, já no estado do Pará, a estrada piorava, e, aos solavancos, percorremos o caminho cheio de ondulações, que fazia da caminhonete uma espécie de barco em mar agitado.
Ao adentrar a terra indígena, o trajeto era estreitado pela mata, ainda não muito densa, por se tratar de vegetação de transição, entre cerrado e floresta amazônica. Isso explica o nome “Portal da Amazônia”, estampado na entrada da cidade de Guarantã do Norte.
Já bem perto da aldeia Kotikô, foi preciso atravessar o rio Iriri, que, em época de seca, costuma estar com o nível de água mais baixo. Não há ponte no trajeto escolhido. Para atravessar de carro, é preciso um motorista experiente e habilidoso, o que Komoio Panará demonstrou ser, surpreendendo quem pensou que a água entraria na caminhonete. Neste trajeto, foi feita a primeira coleta de amostras da água, de um pequeno afluente do Iriri, margeado pela estrada, onde foram encontrados gado e fezes. As químicas Edilaine e Telma fizeram a coleta, cumprindo parte desta etapa da pesquisa, que pretende identificar, qualificar e quantificar a presença de substâncias tóxicas na água.
Essa preocupação se intensificou, principalmente, depois de 2017, quando houve a segunda mortandade de peixes no rio Iriri (a primeira foi em 2003) e o espalhamento de uma mancha verde e fétida às margens das aldeias de Sönkâränsän, Kresã, Sönkwê, e Nänsêpotiti, que se estendeu até a terra Kaiapó (PA). Na época, a análise da água feita pela Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat) não foi conclusiva. O relatório de vistoria técnica elaborado pelo Laboratório de Ictiologia da Amazônia Meridional (Liam) da Unemat, em parceria com o Ibama, sugeriu como principal hipótese a proliferação exacerbada de cianobactérias – que podem produzir altas concentrações de toxinas, prejudicando a fauna e oferecendo riscos à saúde humana em caso de consumo direto dos peixes e da água –, provavelmente relacionada ao uso de fertilizantes nas fazendas localizadas às margens da terra indígena. Mudanças bruscas de temperatura também estão associadas à proliferação das cianobactérias, segundo o relatório, cuja publicação contribuiu para a mudança da rotina nas aldeias e surpreendeu a geógrafa Zaira Moutinho. “Esse fenômeno ocorre naturalmente, mas jamais na magnitude e na velocidade narradas na época”, contou a pesquisadora.

Os indícios da contaminação
O relatório de vistoria técnica, na página 10, apontou: “Ao longo do trecho vistoriado, na região de influência das cabeceiras do Rio Iriri e Rio Iriri Novo, não foi encontrado nenhum indício de despejo pontual de substâncias tóxicas por atividade agropecuária ou mineração, que pudesse justificar a intoxicação da ictio fauna. Entretanto, como as nascentes dos principais tributários dos Rios Iriri e Iriri Novo estão em propriedades rurais no Norte do Estado de Mato Grosso, em região de avanço da agricultura e pecuária, faz-se necessário monitoramento constante da qualidade de água, pois, não descarta-se a poluição difusa, por lixiviação das águas superficiais e a infiltração da água intersticial para rios e lagos que podem introduzir produtos químicos tóxicos, de efeito cumulativo na cadeia alimentar”.

O relatório também apontou, ainda na página 10, o resultado da vistoria realizada especificamente no trecho do rio que banhava a terra indígena Panará: “Durante o deslocamento de barco foram encontrados muitos peixes mortos ou que estavam em estado letárgico das seguintes espécies Potamotrygon motoro – raia; Plagioscion squamosissimus – curvina; Cichla – tucunaré; Crenicichla – joaninha Loricaria – cascudo; Hypostomus plecostumus – cascudo; Prochilodus nigricans – curimba; Ancistrus – cascudo; Hoplias aimara – trairão; Hoplias malabaricus – traira; Leporinus brunneus – piau; Leporinus friderici – piau três pintas; Myleus setiger – pacu; Serrasalmus rhombeus – piranha; Bryconops melanurus – piava; Platydoras – cuiu-cuiu; Moenkausia – lambari, também houveram relatos de Pseudoplatystoma punctifer – cachara, entre outros peixes de grande porte. Mesmo os peixes muito resistentes a hipóxia morreram em locais com teor de oxigênio bom para sobrevivência da ictiofauna, o que indica outro fator causador da morte rápida e letargia dos peixes”.
O relatório recomendava ainda, na página 34: “…vale ressaltar que as populações indígenas das Aldeias Socorasã e Sancuê devem evitar tanto a ingestão de peixes como da água, que poderá causar problemas de saúde. Do ponto de vista de social sugere-se que devam ocorrer reuniões entre as lideranças e a Funai para que possam desenvolver ações para garantir a saúde e qualidade de vida de todos os povos indígenas das áreas banhadas pelo rio Iriri. A principal fonte de proteína das populações moradoras das aldeias é o peixe, se este estiver contaminado pode gerar problemas sérios de saúde”.
A partir deste fato, poços artesianos começaram a ser perfurados nas aldeias Panará. Até o mês de julho de 2024, porém, três delas ainda não tinham um poço – como a Kotikô – e dependiam integralmente das águas do rio Iriri, inclusive para beber e cozinhar. A aldeia Canaã estava em processo de perfuração do poço artesiano.
Neste junho de 2025, os Panará e pesquisadores estão tentando entender um novo evento de mortandade de peixes no Rio Iriri. Este em menor escala, se comparado com o que ocorreu em 2017, mas igualmente preocupante, que vem atingindo principalmente peixes pequenos. Segundo Montagner, entender o que está provocando esses efeitos não é uma tarefa simples, mas que pode ser elucidada alinhando os saberes indígenas e a ciência.

O momento de reunir anciãos e anciãs se aproximava. Vale ressaltar, aqui, sua importância na cultura Panará. Alguns são chamados de tapuntun (ancião) e tuatun (anciã) porque, ao longo da vida, destacaram-se nas ações em favor da comunidade, sendo muito queridos e respeitados por todos na aldeia. O critério para se tornar um tapuntun ou tuatun, portanto, não é apenas a idade, como anciãos e anciãs da cultura não indígena. Na hierarquia de poder, suas decisões valem mais do que as tomadas pelos representantes das aldeias, como os caciques e cacicas. Eles têm autoridade ancestral até mesmo sobre a história que precisava ser registrada. Ao chegar à aldeia Kotikô, os carros da Iakiô pararam perto de onde as indígenas preparavam o almoço. Com fartura, foram servidos às equipes o peixe Piau, beiju de mandioca e bananas. Depois que todos comeram muito bem, organizou-se o local onde seria realizada a roda de conversa, uma casa tradicional indígena, temporariamente ocupada por um funcionário público estadual da área da saúde, que atendia a aldeia. Estranhamos o atraso dos participantes, até que um dos indígenas que nos acompanhavam se ofereceu para percorrer a aldeia e chamá-los. Como ele demorava a voltar, Zaira cogitou a possiblidade de todos estarem no rio e sugeriu que fôssemos também nos banhar. O ritmo na aldeia não era o que nós determinávamos, mas o que a natureza oferecia e os indígenas desfrutavam. Quando acertávamos os últimos detalhes do cenário para a realização da roda, os tapuntun e tuatun começaram a chegar.

A casa onde foi realizada a roda de conversa tinha o telhado feito de palha trançada, típico Panará. Do lado de fora, o chão da aldeia funcionava como um rebatedor natural da luz do sol, que oferecia a claridade ideal para a gravação. Enquanto objetos indígenas como cestas, arcos, flechas e burdunas eram posicionados para não evidenciar os microfones e os fios, os anciãos e as anciãs conversavam com os indígenas que fariam a tradução da conversa para o português.
Entre os tradutores, estavam Perankõ, importante líder Kotikô, filho do grande guerreiro e ao mesmo tempo pacifista, Teseya Panará, que foi contemporizador durante o primeiro contato, articulador da ação indenizatória movida contra a União e a Funai nos anos 1990 e figura fundamental para o reconhecimento dos Panará mortos durante a abertura da BR 163. “Teseya Panará e as mulheres velhas, Sàrkyarasã, Kyütakriti e Swakiê, reconstituíram, um por um, a lista de Panará mortos por doenças epidêmicas no Peixoto de Azevedo, entre 1973 e 1975 – 176 indivíduos”. (ARNT, Ricardo, et ali. Panará, a volta dos índios gigantes. Instituto Socioambiental. 1998, pp. 107)
O jovem comunicador Krekiô Panará relata para a equipe da SEC como atua, ao lado da jovem Jôwpôpri, no projeto que incentiva a formação de comunicadores entre os indígenas para a produção de audiovisuais.
(Continua …)
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Segundo capítulo

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Hebe Rios
Fotos: Raissa Azeredo e Marcos Botelho Jr.
Vídeos: Marcos Botelho Jr., Bruno Jungmann, Krekiô Panará, Ricardo Abad (drone)
Edição de imagem: Alex Calixto, Paulo Cavalheri, Thiago dos Anjos
Arte: Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Coordenação: Álvaro Kassab, Christiane Neme Campos, Laura Freitas Rodrigues