Linha de pesquisa busca novas formas de tratamento e prevenção da epilepsia
Instituto coleta, organiza e analisa dados clínicos, genéticos e de imagem de pacientes atendidos na Unicamp

No início de 1868, o escritor russo Fiódor Dostoiévski relatou em uma carta que vinha passando por uma melhora considerável em seu estado de saúde. Acometido desde a juventude por crises de epilepsia, o autor sofria com frequência de sintomas como “êxtase ilimitado” e “convulsões”, que, segundo afirmava, causavam a destruição de seus nervos e cérebro. Porém, naqueles últimos meses, “por vezes”, o escritor conseguiu passar mais de uma semana livre dos “ataques” e, sem entender as causas dessa melhora, contentava-se com aproveitá-la com a literatura.
Baseando-se em relatos da época, cientistas de hoje supõem que a epilepsia de Dostoiévski tenha se originado em um de seus lobos temporais, as regiões do cérebro que processam os sentidos, a linguagem, as memórias e as emoções. Como passou toda a sua vida no século XIX, o autor nunca dispôs de muitos recursos para lutar contra essa doença. No entanto, se tivesse vivido neste século, é provável que resolvesse seu problema de forma bem mais simples: a maioria dos pacientes atualmente responde bem ao tratamento medicamentoso e, para a minoria, a cirurgia se mostra bastante eficaz.
“Cerca de 70% dos pacientes com epilepsia de lobo temporal que são operados ficam livres de crises para o resto da vida ou por um período de 20 ou 30 anos. Mas, mesmo no caso dos outros 30%, a qualidade de vida melhora, com crises menos frequentes do que antes”, afirmou o médico neurologista Fernando Cendes, docente na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. “O problema é que, para a cirurgia, faz-se necessário antes identificar o foco da doença e garantir que o procedimento não causará ainda mais déficits para o paciente. Então, algumas formas de epilepsia não podem ser tratadas pela via cirúrgica.”
Pensando em encontrar soluções para esse tipo de condição, o Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (Brainn, na sigla em inglês) da Unicamp dedicou uma de suas linhas de pesquisa às epilepsias. Coordenado por Cendes, o Brainn, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), tem como principal objetivo buscar novas formas de tratamento e prevenção para doenças cerebrais debilitantes, como o Alzheimer, o acidente vascular cerebral (AVC) e a epilepsia.
No caso desta última, o instituto coleta, organiza e analisa uma série de dados clínicos, genéticos e de imagem de pacientes com e sem a doença atendidos no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, reunindo informações que auxiliem a responder questões ainda em aberto. Espera-se que essa melhor compreensão sobre o quadro epiléptico possibilite desenvolver tecnologias de apoio aos pacientes, como algoritmos capazes de prever as crises com alguns minutos de antecedência, além de terapias individualizadas.
“Os avanços nesse tipo de pesquisa são sempre lentos e incrementais. O próprio Brainn teve como base um projeto anterior, apoiado pela Fapesp, que se chamava Cinapce [Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro]. Trata-se de algo que vai evoluindo aos poucos”, disse Cendes. “Ao longo desse período, nós colhemos informações de milhares de brasileiros e conseguimos construir um grande banco de dados para responder a essas perguntas, algo essencial quando se trata de uma doença tão heterogênea.”

Comorbidades

Além de coordenar o Cepid, o professor Cendes também lidera os estudos com neuroimagem, que utilizam, em duas linhas principais de pesquisa, dados sobre ressonância magnética e eletroencefalograma para identificar biomarcadores da doença. Enquanto a primeira linha busca determinar e quantificar as alterações estruturais causadas pela epilepsia no cérebro, a segunda visa identificar conexões em diferentes áreas desse órgão, correlacionando os achados com outros dados dos pacientes, como resposta ao tratamento, complicações e prognóstico.
Uma dessas pesquisas investiga a relação entre as alterações nas imagens e as comorbidades em pessoas com epilepsia. Em pacientes adultos e adolescentes, entre as condições mais comuns encontram-se distúrbios mentais como transtornos de humor, depressão e ansiedade, além de transtornos psicóticos e do impulso. Embora parte dessas mazelas possa ser uma reação do paciente à sua condição, estudos já demonstraram que a biologia desempenha um papel relevante nesses casos.
“A gente encontrou mais alteração de volume de espessura cortical em áreas distantes do foco epileptogênico e de maneira mais intensa em pacientes com depressão do que naqueles com a mesma forma de epilepsia, mas que não têm depressão”, explicou o docente. Segundo Cendes, essa alteração corresponderia ao dano cerebral causador da epilepsia. Por ser uma doença de rede, a epilepsia precisa recrutar muitos neurônios em diferentes áreas do cérebro e, quanto maior o número de neurônios envolvidos, mais graves as crises e mais comorbidades o paciente apresenta.
Alterações genéticas
Entre os principais desafios enfrentados pelo Brainn figura o de descobrir por que algumas pessoas reagem bem aos medicamentos enquanto outras, não. Em 2017, um artigo publicado pelos pesquisadores do instituto levantou indícios de que fatores genéticos poderiam estar envolvidos nessa resposta aos medicamentos – uma resposta determinada por genes responsáveis por metabolizar e transportar as substâncias medicamentosas. Os dados, entretanto, se aplicam apenas às epilepsias do lobo temporal mesial, a parte interna do lobo temporal, onde ficam o hipocampo e a amígdala.
No caso das displasias corticais focais, uma malformação ocorrida durante o desenvolvimento do feto que representa a principal causa de epilepsia focal grave em crianças, o empecilho está na quantidade de medicação necessária para interromper as crises. Ao contrário da maior parte das epilepsias, apenas 10% dos pacientes com essa displasia respondem bem aos fármacos porque essas medicações provocam mudanças nas atividades neuronais. Grandes quantidades de remédio poderiam causar efeitos adversos graves, não sendo tolerados pelos pacientes.
De acordo com a médica geneticista Iscia Lopes-Cendes, que também atua no Brainn, o problema agrava-se porque esse tipo de lesão pode ser bastante extensa ou estar próxima de áreas muito eloquentes. Retirar todo o circuito relacionado à doença resultaria em eventuais danos a funções essenciais como visão, audição e fala. “Você retira o que é possível para tentar diminuir aquela massa neuronal anormal, mas essas crianças acabam não tendo uma evolução tão boa porque você não consegue remover toda a lesão”, explicou.
Por esse motivo, no Laboratório de Genética Molecular (LGM) da FCM, Lopes-Cendes lidera estudos sobre a genética das epilepsias de difícil tratamento, procurando mapear a rede de alterações moleculares que provocam essas doenças. No caso das epilepsias monogênicas, avanços nos últimos dez anos já permitiram identificar os fatores envolvidos. Exemplo disso são as variações relacionadas à codificação dos canais iônicos, essenciais para a propagação do estímulo elétrico. Quando sofrem mutações, esses canais podem se tornar hiperativos ou não responderem adequadamente aos mecanismos de inibição, o que predispõe ao disparo em excesso de impulsos nervosos.


O desafio, agora, é compreender ainda mais as epilepsias poligênicas e multifatoriais. As malformações, nesses casos, mostram-se mais difíceis de serem encontradas porque não costumam ser tão drásticas. “O que dificulta é o nosso conhecimento para interpretar variações genéticas mais sutis porque o que mais tem no genoma humano é variação. Então não existem técnicas muito eficazes para identificar quando se trata de uma variação normal e quando se trata de algo que está causando uma doença”, explicou a docente.
Um avanço nesses estudos ocorreu em 2022, quando Lopes-Cendes orientou uma tese conduzida pela neurocientista Simoni Avansini. Nesse estudo, os pesquisadores criaram o primeiro modelo de displasia cortical focal em minicérebros humanos. Essas estruturas, que possuem o tamanho de uma ervilha, consistem em pequenos “organoides” tridimensionais cultivados a partir de células-tronco de pacientes, reproduzindo aspectos específicos da organização e do funcionamento do cérebro humano.
Ao observar os organoides, Avansini identificou um fenômeno anormal de formação de células relacionadas à displasia cortical focal, incluindo partículas gigantes, com até três ou quatro núcleos. Além disso, a pesquisa permitiu ver, pela primeira vez, alterações em fibras de actina, uma proteína importante para a mobilidade dos neurônios e que pode estar relacionada à origem da doença. Isso porque, no processo de formação dessas fibras, os neurônios não conseguem migrar para os locais corretos e, com isso, não recebem os estímulos para se diferenciar e amadurecer.
Pacientes brasileiros
Como fruto dessas pesquisas, o LGM conta hoje com um extenso banco de tecidos, o que tem permitido a participação do grupo em grandes consórcios internacionais. Em 2023, por exemplo, a equipe contribuiu para um artigo, publicado na revista Nature, que analisou cerca de 80 mil dados genéticos de pessoas com e sem epilepsia, demonstrando quantos e quais são os locais no genoma com predisposição para a epilepsia generalizada – que afeta os dois hemisférios do cérebro.
Já que a maioria das pesquisas genéticas sobre epilepsias no mundo utiliza apenas dados de participantes europeus, a colaboração nesse tipo de empreendimento traz informações relevantes sobre a variabilidade genética de outras populações. “Os pacientes brasileiros são miscigenados e, quando isso acontece, o genoma parece um mosaico. Isso pode induzir a resultados errôneos na análise do genoma se os dados forem comparados com grupos de controle de outras etnias”, observou Lopes-Cedes.
Por esse motivo, os cientistas criaram a Iniciativa Brasileira de Medicina de Precisão (Bipmed, na sigla em inglês), uma colaboração do Brainn com outros quatro Cepids para recolher e disponibilizar em uma plataforma dados genéticos e clínicos úteis para pesquisas sobre a arquitetura genômica de brasileiros. Pretende-se que esses dados contribuam para o desenvolvimento de tratamentos personalizados, atendendo às necessidades individuais de cada paciente.
Um importante passo nesse caminho ocorreu em 2024, quando o Brainn publicou um estudo caracterizando, por meio do sequenciamento de célula única, as células presentes na displasia cortical focal. Essa tecnologia, uma abordagem ainda pouco utilizada no país, permite analisar as células individualmente, o que fornece informações mais detalhadas sobre a função e expressão gênica de cada uma delas. O estudo conseguiu mapear alterações em mais de 60 mil células de pacientes brasileiros, resultando no primeiro Atlas Celular da Displasia Cortical Focal no mundo.
A mesma metodologia constou do estudo sobre o genoma de brasileiros com epilepsia do lobo temporal mesial. Os envolvidos no projeto esperam ver os resultados publicados até o final do ano. “Agora a gente está começando a ter ferramentas para interpretar melhor a regulação dos genes nessas variações e com dados produzidos aqui. Existem poucos grupos no país gerando dados de brasileiros. A maioria utiliza bases internacionais, e nós somos certamente o único deles trabalhando com epilepsia”, contou a professora.
Doença atinge 80 milhões no mundo
A epilepsia, uma doença neurológica, atinge 1% da população mundial, ou cerca de 80 milhões de pessoas. Trata-se de uma alteração intermitente no funcionamento do cérebro que pode ser causada por variações genéticas, ferimentos na cabeça, traumas de parto, tumores ou o abuso de substâncias. Tais condições causam uma hiperativação das células do cérebro, desorganizando os sinais elétricos da região, que “disparam” e “recrutam” neurônios simultaneamente em diversas áreas desse órgão.
Embora as convulsões sejam as manifestações mais conhecidas dessa doença, há vários outros sintomas, como crises de ausência, crises focais com distorções na percepção, medo repentino, desconforto no estômago, alucinações visuais e auditivas, perda de consciência, déficit de memória e contrações nas extremidades do corpo. “A crise, imprevisível e estigmatizada, impede que a pessoa dirija e está relacionada com traumas e acidentes. A pessoa pode ter fraturas, hematomas na cabeça e até queimaduras de terceiro grau, se estiver cozinhando, por exemplo”, comentou Cendes.
Além disso, pessoas que não conseguem controlar a doença correm mais riscos de sofrer uma morte súbita inesperada em epilepsia (Sudep, na sigla em inglês), quando a pessoa falece de maneira repentina e sem causa aparente, geralmente após uma crise. Os médicos ainda não conhecem muito bem os mecanismos envolvidos nesse tipo de óbito, mas acreditam haver alguma relação com uma arritmia cardíaca desencadeada pelo estímulo da crise. “É preciso ter em mente que a epilepsia não tratada pode matar. Então a gente tem que tentar o maior número possível de alternativas para controlá-la”, disse Lopes-Cendes.