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Ambivalências da vida boêmia

Ambivalências da vida boêmia

Pesquisa mostra dilema de artistas e literatos do século XIX em busca da autonomia da arte

Retrato de Émile Zola feito em 1868 por Édouard Manet: sobriedade para dissociar o escritor da imagem de boêmio
Retrato de Émile Zola feito em 1868 por Édouard Manet: sobriedade para dissociar o escritor da imagem de boêmio

Ambivalências da vida boêmia

Pesquisa mostra dilema de artistas e literatos do século XIX em busca da autonomia da arte

Retrato de Émile Zola feito em 1868 por Édouard Manet: sobriedade para dissociar o escritor da imagem de boêmio
Retrato de Émile Zola feito em 1868 por Édouard Manet: sobriedade para dissociar o escritor da imagem de boêmio

O amor pela arte e a vida aventureira representam algumas das características mais conhecidas do estilo de vida boêmio, perdurando até os dias de hoje. Mas as representações da boemia nunca foram livres de tensão. No século XIX, artistas e escritores identificados como boêmios, ao mesmo tempo em que tentavam criar inovações fugindo dos ditames das instituições, chocavam-se com a necessidade de vender suas obras e de se inserir no mercado. Em uma tese defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Thaís Soranzo analisa, nos contextos do Brasil, da França e da Inglaterra, como literatos e pintores tentavam obter uma autonomia da arte em meio aos debates em torno do naturalismo e do impressionismo e, simultaneamente, deparavam-se com problemas como a busca por prestígio social e dinheiro.

O impressionismo e o naturalismo, movimentos da metade do século XIX, nasceram na França. Os impressionistas buscavam abolir as convenções estéticas e romper com as normas da academia e com o realismo, que almejava retratar a realidade com exatidão. Os expoentes desse movimento incluem Claude Monet, Edgar Degas, Édouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, nomes hoje reconhecidos mundialmente, mas que, na época em que estavam propondo suas inovações, viram-se rechaçados. “As obras desses artistas hoje custam milhões de reais, mas, quando surgiram, foram alvo de total escárnio. A pesquisa, então, tenta recuperar essa primeira recepção experimentada pelos impressionistas”, conta Soranzo.

Os naturalistas preocupavam-se com direcionar a arte de modo a retratar a realidade cotidiana. O escritor Émile Zola, considerado um dos fundadores desse movimento, contou com uma grande repercussão no Brasil. “Zola, o grande precursor do naturalismo na literatura, defendia o projeto de fazer com que a arte se voltasse para uma realidade mais ordinária. Com isso, passamos a testemunhar simultaneamente na literatura e na pintura o interesse por figuras até então consideradas indignas de serem retratadas na arte, como lavadeiras, garçonetes, prostitutas, modistas.”

O impressionismo e o naturalismo, explica a autora da tese, por vezes se confundiam, já que os artistas alimentavam uma preocupação constante de retratar o cotidiano da metrópole e o ritmo urbano da virada do século XIX para o século XX. Ambos os movimentos visavam ainda à busca pela autonomia da arte, ideal que, segundo Soranzo, expressa-se nos romances dos autores analisados na tese: Gonzaga Duque, brasileiro, Zola, francês, e George Moore, britânico. 

Thaís Soranzo, autora da tese: escritores se valeram da imprensa para contestar a arte tradicional
Thaís Soranzo, autora da tese: escritores se valeram da imprensa para contestar a arte tradicional
Thaís Soranzo, autora da tese: escritores se valeram da imprensa para contestar a arte tradicional
Thaís Soranzo, autora da tese: escritores se valeram da imprensa para contestar a arte tradicional

Prestígio e dinheiro

A identificação com uma vida boêmia, para essa vanguarda, tem relação com o afastamento das rígidas instituições oficiais de arte. A circulação por cafés e ateliês e a criação de circuitos de arte independentes, no entanto, se chocavam com a necessidade de conseguir dinheiro e reconhecimento. 

“A noção de boemia é um tanto problemática porque esses escritores e artistas, de modo geral, estavam tentando romper com o sistema e criar outro movimento artístico, mas existiam empecilhos que dificultavam essa liberdade. Por isso, a boemia se apresenta como esse espaço de tensão em que prevalece o esforço de se enquadrar no mercado e em determinados círculos sociais”, explica a pesquisadora.

“Eles queriam instituir um território que é autônomo, com um modo de vida que é essa boemia, que é diferente do modo de vida do burguês, mas precisavam se inserir no mercado, precisavam que alguém comprasse seus quadros”, sintetiza o orientador da tese, professor Jefferson Cano. 
Uma das estratégias criadas e que exemplificam essa ambiguidade era a forma como pintavam uns aos outros. Manet, por exemplo, fez um retrato de Zola. “Ele [Zola] é retratado de maneira sóbria, como um intelectual austero. Manet, ciente de que o seu nome estava associado a Zola, faz um retrato que indicava algo do tipo: ‘Vejam como meu porta-voz na imprensa, meu amigo literato, é um artista sério, respeitado’. Então a gente percebe que eles tentam também criar uma imagem que se dissocie um pouco do imaginário boêmio.”

Essas representações, diz a autora da tese, mostram os artistas preocupados com o esforço de se apresentarem como renomados, a despeito do desprezo vindo das instituições oficiais de arte.

 O orientador da pesquisa, professor Jefferson Cano: reelaboração do ideal de autonomia
O orientador da pesquisa, professor Jefferson Cano: reelaboração do ideal de autonomia

A imprensa

 O orientador da pesquisa, professor Jefferson Cano: reelaboração do ideal de autonomia
O orientador da pesquisa, professor Jefferson Cano: reelaboração do ideal de autonomia

A imprensa também representava um espaço ao qual os artistas e escritores recorriam com esse fim, já que funcionava, à época, como o principal veículo de circulação de ideias. Além disso, essa imprensa oferecia um meio de sobrevivência a muitos escritores. “Os três autores estudados na tese foram jornalistas que atuaram como críticos de arte e que precisavam da imprensa como fonte de renda. Mas eles também se valeram da imprensa para divulgar um novo objeto artístico, uma nova forma de representação estética, usando esse espaço para contestar o lugar tradicional da arte. Ao divulgarem o impressionismo e o naturalismo, eles não só garantiram seu sustento como promoviam seu próprio nome”, explica Soranzo.

Essas vozes, ao divulgarem a arte moderna, contrapunham-se a textos que retratavam o impressionismo e o naturalismo sob o viés do escândalo, como exemplificam trechos presentes na tese:

“Não quero obras escolares, feitas segundo modelos fornecidos pelos mestres. […] Não quero retornos ao passado, pretensas ressurreições, quadros pintados segundo um ideal formado de cacos de ideal apanhados em todas as épocas. Eu não quero nada que não seja absolutamente vida, temperamento, realidade!” (Émile Zola);

“Sei que os acadêmicos e os comerciantes são a favor de prostituir a arte. O fato de que alguns rapazes exerçam a pintura pelo mero amor ao ofício causa repulsa a todo judicioso filisteu.” (George Moore);

“As proteções da nossa Academia aos artistas que só têm uma qualidade – a de possuírem padrinhos endinheirados – têm estragado a mais de um artista de talento, atirando-os ao obscurantismo desanimador, fazendo deles retratistas medíocres pelo centro apertado em que vivem.” (Gonzaga Duque).

Os três escritores, ainda, refletem em seus próprios romances sobre o ideal da arte. Elucidando o trânsito de ideias ocorrido entre os três países, Soranzo mostra como Zola, Moore e Duque inovam esteticamente ao fazerem da “tensão entre a obra e a vivência artística um problema literário”.

Segundo Cano, “[a tese] consegue mostrar como vão se efetuando as relações entre os artistas e as apropriações que vão acontecendo fora do limite parisiense, além de como vai se reelaborando esse ideal de autonomia”.

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