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A costura fina da rede de apoio contra a violência

Projeto de pesquisa e extensão já acolheu cerca de 350 moradores da região norte de Campinas

Projeto de pesquisa e extensão já acolheu cerca de 350 moradores da região norte de Campinas
Projeto de pesquisa e extensão já acolheu cerca de 350 moradores da região norte de Campinas

Angústia, desamparo, vergonha, confusão mental, sentimento de culpa, sensação de enlouquecimento, dificuldade de nomear as coisas, dúvida sobre sua própria percepção. Enfrentando um quadro do tipo, pessoas afetadas pela violência recebem acolhimento no Serviço Público de Psicanálise e Matriciamento para Situações de Violência (Liame) da Unicamp, que atendeu 244 mulheres adultas e 105 adolescentes de vários gêneros, entre 2023 e abril de 2025, além de ter qualificado cerca de 800 profissionais das áreas da saúde, assistência social e educação que atuam nas unidades públicas da região norte de Campinas.

Criado pelo grupo de pesquisa Interfaces, do Departamento de Saúde Coletiva da área de política, planejamento e gestão da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade, o Liame conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O trabalho de acolhimento e atendimento psicológico transcorre no âmbito das atividades de pesquisa e extensão.

“O efeito da violência na sociedade e nos trabalhadores da saúde que atendem a população é muito desorganizador. A violência fragmenta, silencia, deixa as pessoas confusas. Precisamos pensar serviços que façam o contrário: que juntem, que reúnam, que articulem, que liguem e que cuidem. É um trabalho de costura fina”, afirma a médica psicanalista Rosana Onocko-Campos, idealizadora e coordenadora do grupo e chefe do Departamento de Saúde Coletiva da FCM. A especialista adotou como modelo de trabalho o apoio matricial, por meio do qual diferentes especialidades profissionais integram-se de forma colaborativa. A metodologia, desenvolvida pelo médico e professor titular da FCM Gastão Wagner de Sousa Campos, contribui para o fortalecimento da rede.

Rosana Onocko-Campos, idealizadora e coordenadora do Liame: a violência silencia
Rosana Onocko-Campos, idealizadora e coordenadora do Liame: a violência silencia

“Mas, para a violência, entendemos que só o apoio matricial não é suficiente, porque não dá para pensar que apenas uma política vai dar conta de trabalhar com as situações de violência. Por isso, propomos o apoio matricial intersetorial, para que possamos, juntos, fortalecer a rede e cuidar dessas pessoas.” O Liame articula diferentes áreas – como saúde, assistência social e educação – e diferentes órgãos de atendimento já presentes na rede.

Para cada caso que passa pelo atendimento, há uma comunicação, informando sobre o tratamento, endereçada ao serviço que encaminhou originalmente o paciente – uma escola, um posto de saúde ou uma unidade de assistência social. “Entendemos a violência a partir da psicanálise, mas não trabalhamos da forma clássica, burocrática. Nós reunimos as equipes e tentamos tecer a rede de atendimento para que a pessoa tenha o suporte a partir dessas redes intersetoriais. Isso é muito diferente do que em geral os serviços fazem”, descreve Onocko-Campos. “A costura que temos feito é difícil e trabalhosa, porque a rede, em tese, está dada, mas na prática não está. As pessoas caem pelos buracos o tempo inteiro. Precisamos tecer de novo.”

Rosana Onocko-Campos, idealizadora e coordenadora do Liame: a violência silencia
Rosana Onocko-Campos, idealizadora e coordenadora do Liame: a violência silencia

‘Temos que interromper’

A psicanalista lembra que, quando propôs o Liame para atender pessoas expostas à violência, sem separá-las segundo grupos específicos, muitos ironizaram. “Perguntavam se iríamos atender a população inteira do Brasil, porque todos estão expostos à violência.” Autora do recém-lançado livro Psicanálise & Saúde Coletiva (São Paulo, Hucitec Editora, 2024), no qual analisa a violência colonizadora fundacional do país, Onocko-Campos afirma não ser por acaso que cresce a quantidade de estupros e de todo tipo de ação violenta no Brasil.

“O racismo e o estupro foram formas de controle dos corpos escravizados. A violência está instalada em várias gerações e tem se reproduzido nos filhos e netos. Para nós, é um imperativo ético interromper essa transmissão transgeracional da violência. Temos que interromper isso. Não precisamos continuar vivenciando esse caldo de violência.”

De acordo com a psicanalista, o Brasil conta com muitas políticas públicas já elaboradas, mas, muitas vezes, os serviços de atendimento não conseguem ajudar as pessoas na hora em que precisam de acolhimento. “Como a gente está trabalhando com a violência, isso se torna mais urgente. A violência sempre tem urgência”, diz.

Antes do financiamento vindo da Fapesp, a partir de 2023 – e que deve terminar em 2028 –, o serviço contou com verbas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre 2018 e 2022, tendo sido implementado em 2021. “Ao longo desses anos, compreendemos que faz muita diferença na vida das pessoas uma acolhida radical, que é se dispor a acolher de algum jeito. Isso tem efetividade”, afirma Onocko-Campos. “Meu sonho é que isso possa ser uma ferramenta de transformação social no Brasil. Trata-se de um projeto que tem se sustentado pelo financiamento público de pesquisa, mas, se tivermos bons resultados, o objetivo é que ele possa se multiplicar pelo Brasil afora e que possamos ter financiamento público para garantir o chamado acolhimento radical.”

Em 2005, o Ministério da Saúde reconheceu a violência como um dos principais problemas de saúde pública e de cidadania. “Quanto mais desigual uma sociedade, mais a violência vai se perpetuar. Há influência da economia e das questões sociais e políticas. Esse é um fenômeno complexo e multicausal que acompanha toda a história da humanidade e as suas transformações. A violência vai ter a cara da sociedade que a produz”, diz a terapeuta ocupacional Giovana Pellatti, uma das coordenadoras do projeto.

A terapeuta ocupacional Giovana Pellatti: fenômeno complexo e multicausal
A terapeuta ocupacional Giovana Pellatti: fenômeno complexo e multicausal

Duas frentes

Duas estruturas institucionais compõem o serviço de atendimento: a Rede de Apoio Matricial para Situações de Violência (Rasev), espaço de formação e de fortalecimento dos profissionais da área; e o Núcleo de Assistência Psicanalítica para Pessoas em Situações de Violência (Napev), que atende por meio de psicoterapia breve de orientação psicanalítica – mulheres a partir dos 18 anos e adolescentes de 14 a 17 anos afetados pela violência, direta ou indiretamente.

“O serviço tem permitido não só atender às pessoas que chegam, mas também formar profissionais”, explica Onocko-Campos. São oito sessões de psicoterapia psicanalítica breve, em grupos, conduzidas por um residente e um profissional analista mais experiente. O trabalho multiprofissional fica a cargo de psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e pedagogos, entre outras especialidades. Segundo a professora, o Liame foi idealizado a partir da ciência de implementação, modalidade de pesquisa que diminui o tempo de implementação das inovações.

A terapeuta ocupacional Giovana Pellatti: fenômeno complexo e multicausal
A terapeuta ocupacional Giovana Pellatti: fenômeno complexo e multicausal
A psicóloga Gabriela Côrtes: falta de acolhimento produz uma segunda violência
A psicóloga Gabriela Côrtes: falta de acolhimento produz uma segunda violência

Estilhaços

A psicóloga Gabriela Côrtes trabalha com grupos de mulheres que procuram o serviço. “Elas chegam em momentos diferentes. Algumas dizem que não vão conseguir falar. Outras já despejam tudo o que estava represado, porque temiam falar em outros lugares com medo do julgamento das demais pessoas. É comum falarem: ‘Acham que eu estou louca e aumentando as coisas’. Ou seja, duvidam de si mesmas, não validam e sofrem o efeito do desmentido. Essa falta de acolhimento produz uma segunda violência, e a pessoa passa a duvidar de si mesma e da própria percepção. Ela é reviolentada.” Muitas não querem que os outros saibam, em alguns casos com medo de sofrer mais violência ou por se sentirem culpadas, revela Côrtes.

A psicóloga Gabriela Côrtes: falta de acolhimento produz uma segunda violência
A psicóloga Gabriela Côrtes: falta de acolhimento produz uma segunda violência

Após as oito sessões de terapia em grupo do programa de atendimento do Liame, segundo a psicóloga, essas mulheres passam a ter uma autoconsciência melhor, conseguem nomear o que ocorreu, reconhecem os estilhaços dessa violência, do rompimento dos vínculos e do isolamento e passam a reconstituir uma rede de apoio que as ajuda a resgatar a autoestima e os próprios desejos, como projetos que foram interrompidos e sua história de vida. “Nós trabalhamos os aspectos emocionais na psicoterapia e ampliamos a rede do cuidado.”

Nos grupos de adolescentes, a mediação passa pela simbolização. De acordo com Bruno Waldman, psicólogo e especialista em saúde mental, historicamente essa é uma população com menos acesso aos serviços de saúde. “Há um esforço um tanto pessoal, um tanto coletivo, para que esse jovem esteja no centro desse cuidado.”

Waldman já fez residência no Liame e hoje é preceptor ali. “A violência tem um efeito deletério. Ela tira a possibilidade de simbolização. Então, às vezes, a pessoa não consegue expressar e, anteriormente ainda, ela não consegue identificar a violência.”

O psicólogo Bruno Waldman: em busca de desfechos e resultados mais saudáveis
O psicólogo Bruno Waldman: em busca de desfechos e resultados mais saudáveis

Os adolescentes que passam pelo Liame sofreram diferentes tipos de violência: alguns presenciaram cenas de violência doméstica envolvendo os pais, outros sofreram violência sexual ou vivenciaram no seu território a violência do tráfico de drogas, testemunharam mortes, sofreram o que chamam de bullying na escola (casos que na maioria das vezes se configuram como de racismo ou homofobia) ou estão em uma situação de vulnerabilidade econômica. “Trata-se de violências heterogêneas.” Os participantes são meninos, meninas ou pessoas não binárias.

Alguns garotos chegam imbuídos da certeza de que não podem chorar ou pedir ajuda. Nos relatos das meninas, é comum falarem sobre como se sentem vulneráveis. “São as violências cotidianas que vão parecendo corriqueiras, mas que são marcas importantes”, afirma Waldman.

Os adolescentes chegam incapacitados de simbolizar o que aconteceu, mas apresentam uma potência grupal muito grande. Segundo o psicólogo, esses adolescentes saem da terapia levando consigo a possibilidade de algo novo, “nem que seja uma tentativa e erro mais saudável de se relacionar, de perceber o outro, de se perceber na relação com o outro, com um olhar menos marcado pela violência”.

“Vamos além do atendimento e tentamos costurar a rede, no sentido de poder fomentar o cuidado dessas pessoas. A preocupação do Liame é que a pessoa não se perca na rede”, diz Waldman. Isso implica “amarrar com os serviços do território”, ou seja, dar devolutiva ou reencaminhar aos serviços como centros de saúde, escolas, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps).

De acordo com o psicólogo, a marca da violência vai estar presente, “mas nós cuidamos para amenizar isso, criando possibilidades de eles ensaiarem desfechos mais saudáveis de uma relação. Esse é um trabalho especial que tem tido resultados muito bonitos”.

O psicólogo Bruno Waldman: em busca de desfechos e resultados mais saudáveis
O psicólogo Bruno Waldman: em busca de desfechos e resultados mais saudáveis
A terapeuta ocupacional Ana Luísa Sombini: ofertas em rede são a melhor escolha
A terapeuta ocupacional Ana Luísa Sombini: ofertas em rede são a melhor escolha

Difícil escuta

A atuação de uma equipe interdisciplinar no atendimento representa um dos diferenciais do trabalho do Liame, acredita Côrtes. “Nós conseguimos qualificar essa escuta da violência, que é muito difícil porque leva o profissional a situações extremas de vida”, afirma a psicóloga. “É preciso esse cuidado e supervisão para o profissional não se identificar com essa violência e poder conseguir desenvolver ferramentas, porque, quando você escuta a violência, é tomado por seus estilhaços. Você precisa estar em um estado emocional diante da pessoa vitimada pela violência sem se identificar ou querer resolver o problema. É complexo, há várias camadas”, descreve a psicóloga.

Ao longo dos 12 anos que atua na área, Côrtes diz que viu de perto o desmonte da rede de saúde mental. “Isso desarticula a gente e deixa as pessoas mais vulneráveis a situações de violência. A rede ficou mais esburacada e o acesso a ela, mais difícil. Portanto, o processo de articulação de rede que o Liame faz com muita delicadeza é um processo importante”, defende.

Pellatti descreve o efeito da violência como ondas que se propagam, “porque, depois que acontece, ela não acaba naquele momento. Ela se espalha no ambiente familiar, nas redes de apoio e de uma forma mais ampla no nível comunitário social”. Ou seja, a violência não vai só incidir no sujeito que a sofreu diretamente, mas em todo mundo que vive naquele espaço, afirma a terapeuta ocupacional.

Para a também terapeuta ocupacional Ana Luísa de Moraes Sombini, no passado residente e hoje preceptora no Liame, “a violência nunca é um caso isolado. Ela é uma trajetória”. Por causar um grande sofrimento psíquico, interfere na saúde mental das pessoas.

A terapeuta ocupacional Ana Luísa Sombini: ofertas em rede são a melhor escolha
A terapeuta ocupacional Ana Luísa Sombini: ofertas em rede são a melhor escolha

Tendo em vista esses desdobramentos, o acolhimento e o cuidado se fazem necessários. “Para vítimas de violência, o melhor cuidado que podemos ofertar é o cuidado em rede. A partir dos estudos da psicanálise, sabemos que a pessoa que sofre violência fica muito sozinha. Há o rompimento dos laços familiares, dos laços comunitários e dos laços com as instituições. O nosso trabalho é fazê-la se entender e tecer essa rede para si mesma novamente. Se ela tem outros pontos de apoio, vai tendo mais estrutura para poder suportar as situações da vida.”

Segundo Sombini, a violência institucional também tem sido discutida. “Um adolescente que teve muitos direitos negados desde a infância, que não conseguiu estudar, cuja família passou fome, que não teve direito a moradia e que, aos 12 anos, entra em conflito com a lei, para depois sofrer uma medida socioeducativa, é vítima de violência institucional. Uma série de tipos de violência operaram na vida desse sujeito.”

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