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Restrições dos Estados Unidos põem Brasil no centro da política migratória do Sul Global

Esta é uma das conclusões do Atlas Temático elaborado pelo Observatório das Migrações em São Paulo em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região

As medidas restritivas impostas pelos Estados Unidos em relação à entrada de imigrantes indesejados, latinos, povos de origem indígena e populações não brancas, deverão aumentar ainda mais o fluxo migratório rumo ao Brasil nos próximos anos e transformar o país em uma peça-chave da política migratória do Sul Global. 

Essa é uma das conclusões do Atlas Temático elaborado pelo Observatório das Migrações em São Paulo, do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo), da Unicamp, em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, e que acaba de ser lançado.

De acordo com o estudo, coordenado pela desembargadora Catarina von Zuben e por Gabriel Lopes Coutinho Filho, nos três primeiros anos do século XXI, 22 mil indivíduos, em média, apareceram no Registro Nacional Migratório (RNM). Já em 2022, esse número chegou a 243.674, um aumento de mais de 1.000%. O volume de registros caiu um pouco em 2023 (232.193), mas, até julho de 2024, já havia chegado a 136.572, o equivalente a 520% acima do verificado no início dos anos 2000. 

A pesquisadora o Nepo Rosana Baeninger e a procuradora do TRT Catarina von Zuben
A pesquisadora do Nepo Rosana Baeninger (à esquerda) e a desembargadora do TRT Catarina von Zuben: registros equivalente a o equivalente a 520% acima do verificado no início dos anos 2000

O atlas mostra que, no decorrer do século XXI, o Brasil computou cerca de 2,4 milhões de novos registros de imigrantes no país, com ondas como a migração haitiana em 2011 ou as migrações venezuelanas, a partir de 2018. No total, foram mais de 800 mil, nos últimos cinco anos, de pessoas vindas da Venezuela, do Haiti, da Bolívia, da Colômbia, da Argentina, de Cuba e do Paraguai, entre os 228 países e ilhas de origem de imigrantes. 

Segundo a pesquisadora do Nepo e organizadora do estudo, Rosana Baeninger, prevê-se um aumento no fluxo nos próximos anos. “O Brasil é um país-tampão do Sul Global”, diz a professora. “[O país] vai represar os fluxos migratórios que o Norte Global não quer”, explica. “Contudo o Brasil não é o país desejado. É o país possível e, assim, se torna um país de trânsito para imigrantes e solicitantes de refúgio chegarem aos Estados Unidos, em travessias perigosas, violentas e indocumentadas.”

O estudo afirma que vários fatores contribuem para o Brasil estar na rota das migrações internacionais. Primeiro, por conta das restrições à entrada de imigrantes no Norte Global, especialmente nos Estados Unidos. 

Imigrantes internacionais com Registro Nacional Migratório
Fonte: Atlas Temático

De acordo com o estudo, o século XXI testemunha profundas transformações na dinâmica do fluxo de imigrantes estrangeiros que pretendem chegar ao Brasil, como imigrantes oriundos, sobretudo, do chamado Sul Sul e os refugiados.

Segundo o documento, essa tendência tornou-se ainda mais evidente no período subsequente à pandemia de covid-19. “[Isso fez do] Brasil um país-tampão na geopolítica das migrações internacionais, com o represamento de imigrantes indesejáveis ao Norte Global”.

Um outro aspecto é o fato de o Brasil possuir boas possibilidades de regulamentação migratória, já que o Estatuto do Refugiado e a Lei de Migração atualmente em vigor têm como base o respeito aos direitos humanos.

O Brasil possui, ainda, uma forte inserção na divisão internacional do trabalho como um dos principais produtores de commodities do mundo e, com isso, passa a compor o mercado global do trabalho migrante, em especial no caso do nicho dos frigoríficos, com trabalhadoras e trabalhadores que chegam de diferentes partes do mundo, mas quase todos do mundo dito periférico.

Racismo e xenofobia

O documento mostra que a consolidação do Brasil como rota das migrações transnacionais, mesmo que em caráter temporário – já que o território brasileiro pode ser apenas uma das etapas de um projeto migratório rumo ao Norte Global –, traduz-se em um contingente crescente de trabalhadores que necessitam da garantia de seus direitos e de acesso às políticas sociais. 

O estudo cita um levantamento do Alto Comissariado das Nações Unidos para os Refugiados (Acnur) segundo o qual cerca de 731 mil imigrantes presentes no Brasil, em um total de 163 nacionalidades, encontram-se em um grau extremo de vulnerabilidade social e necessitam de proteção internacional. 

Imigrantes internacionais com Registro Nacional Migratório segundo região de residência
Fonte: Atlas Temático

De acordo com a professora, uma das tarefas mais importantes do documento é identificar de forma adequada quem são os migrantes que chegam ao Brasil e como o país deve se preparar para recebê-los. O estudo, diz Baeninger, pretende oferecer subsídios para que os juízes e desembargadores da justiça do trabalho possam tomar decisões que facilitem o processo de acolhimento e de inserção em vagas de trabalho decentes. 

O primeiro ponto a se destacar no atlas é a característica de heterogeneidade étnico-racial das migrações contemporâneas. Isso é um dado muito importante para o juiz tomar uma decisão”, explica a pesquisadora.

“O recorte que fazemos por nacionalidade traz um fator importante do preconceito e da xenofobia, já que se trata de um migrante muito diferente daquele dos séculos 19 e 20, que eram os imigrantes europeus. E esse é um ponto importante porque vai explicar em grande parte por que esses migrantes atuais vão estar cada vez mais precarizados, cada vez mais subalternos no mercado de trabalho e na sociedade”, alerta.

“Portanto, estamos falando de imigrantes latino-americanos, aqueles de raízes indígenas, imigrantes não brancos. Esse é um primeiro olhar. Muito diferente daquele modelo considerado ideal da política migratória do século 19, que era o imigrante branco, europeu e dito ‘civilizado’.”

Para ela, o Brasil passou do trabalho escravizado para o assalariado com a mão de obra europeia e, com isso, formou um imaginário migratório. 

“Passados dois séculos, a chegada desses novos imigrantes vai bater de frente com a nossa questão estrutural do racismo. Ele é o estranho, o que incomoda. E sentimos isso porque não somos uma sociedade multicultural. A nossa preocupação foi trazer essa dimensão para os tomadores de decisão e alertar a sociedade sobre precisarmos mudar nosso padrão civilizatório.” 

Banco de Imagens do Observatório das Migrações em São Paulo
Banco de Imagens do Observatório das Migrações em São Paulo

Estrutura

Baeninger chama a atenção para um outro desdobramento do fenômeno. Segundo a professora, o Brasil tem uma legislação amigável no que diz respeito à documentação, mas delega as ações de acolhimento para as prefeituras e organizações não governamentais. E aí podem surgir os gargalos.

O atlas chama a atenção para a falta de preparo do país nessa fase do processo, apresentando, como exemplo, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2018, segundo a qual apenas 230 prefeituras, entre as 5.570 do Brasil, indicaram ter algum tipo de gestão das migrações internacionais. A pesquisa do IBGE mostra ainda que somente 25 prefeituras no país realizam atendimento multilíngue nos serviços públicos. 

No Estado de São Paulo, 12 municípios declararam possuir centros de referência para imigrantes e refugiados, e Campinas é um deles. “Nota-se, portanto, a urgência de que o poder público se atualize e se capacite para o acolhimento e a governança das migrações internacionais”, conclui a professora. Além de Baeninger, também participaram da organização do Atlas Temático, Natália Demétrio e Joíce Domeniconi.

Atlas Temático foi elaborado pelo Observatório das Migrações em São Paulo em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região
Atlas Temático foi elaborado pelo Observatório das Migrações em São Paulo em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região
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