Plataforma integra dados sobre o clima com saúde materna e perinatal
Projeto Climaterna vai oferecer subsídios para formuladores de políticas públicas
Uma nova plataforma de dados integrados que permita visualizar qual a relação entre o clima e a saúde materna e perinatal. Essa é a proposta do Projeto Climaterna, desenvolvido por professores da Unicamp e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) no âmbito do Centro de Pesquisa em Inteligência Artificial – Brazilian Institute of Data Science (BI0S) da Universidade. A ferramenta procura oferecer a pesquisadores, gestores públicos e formuladores de políticas públicas subsídios para investigar e propor soluções em vista dos possíveis efeitos negativos das mudanças climáticas sobre a gestação e a saúde de mães e bebês. A plataforma deve começar a funcionar no início de dezembro, colocando em prática uma proposta pioneira de integrar esses dados e facilitar o acesso por parte de qualquer usuário.
“A emergência climática vai impactar a forma como vivemos, principalmente a vida das pessoas mais vulneráveis”, afirma Rodolfo Pacagnella, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e coordenador do projeto. Segundo o docente, pesquisas internacionais de um tipo ainda incipiente no Brasil indicam que fatores como ondas de calor e de frio, eventos extremos como fortes chuvas e a poluição do ar podem aumentar o risco de nascimentos prematuros e afetar a saúde perinatal e materna. Por isso, o grupo propõe que a plataforma ofereça bases para um observatório permanente da relação entre o clima e a saúde materna e a dos bebês.
Diversidade de dados
A ideia de criar uma ferramenta possibilitando esse tipo de cruzamento de dados tomou forma a partir da intersecção de duas das grandes áreas temáticas de pesquisa do BI0S, as da saúde e do agro. “Trata-se de um trabalho essencialmente interdisciplinar”, destaca Pacagnella. Segundo o pesquisador, que também coordena a área de saúde do centro, os problemas que acometem mães e bebês, podendo resultar em prematuridade, morte perinatal e/ou materna, derivam de múltiplos fatores, desde os fisiopatológicos até assistenciais e sociais. No entanto estudos recentes passaram a apontar que as mudanças climáticas podem deflagrar essas ocorrências indesejáveis. “Há uma lacuna no Brasil sobre o tema. Ainda não temos essas informações”, explica o docente, ressaltando que a Unicamp tornou-se uma referência em pesquisas na área.
A criação da Plataforma Climaterna envolveu um trabalho de busca e curadoria de dados populacionais, climáticos e de saúde vindos de diversas fontes. Os dados demográficos, entre os quais taxas de natalidade e mortalidade, idade, sexo e aspectos socioeconômicos, foram coletados junto a instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); os dados de saúde, com indicadores de mortalidade materna, morbidade, prematuridade e complicações neonatais, obtidos do Ministério da Saúde e de sistemas de informação hospitalar; e os dados climáticos e ambientais, como temperatura, índice pluviométrico, eventos extremos, poluição e qualidade do ar, requisitados junto a fontes como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a Agência Nacional de Águas (ANA) e a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
A partir da integração dos dados em uma mesma ferramenta, os cientistas conseguirão mapear tendências e identificar padrões de vulnerabilidade e risco envolvendo as condições climáticas e a saúde materna e perinatal.
“Queremos identificar, por exemplo, o que pode ser considerada uma onda de calor para gestantes. Muitas vezes, tomamos por base que um evento assim ocorre quando a temperatura ultrapassa um valor padrão. Porém, para as gestantes, essa temperatura de referência pode ser menor”, detalha Priscila Coltri, climatologista do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp e uma das coordenadoras da área de agro do BI0S. As informações, os mapas e os gráficos ficarão disponíveis em um painel visual interativo (dashboard), de acesso e navegação simples, sendo possível fazer o download dos dados brutos para aplicação em outras análises. “Queremos que pessoas leigas, que não possuem experiência em trabalhar com grandes volumes de dados, possam compreender o que os números dizem”, afirma Coltri.
Os pesquisadores comentam que a integração de uma grande quantidade de dados obtidos de diferentes plataformas representou um desafio. “Entre nascimentos e mortes, temos cerca de 30 milhões de registros coletados desde 2011”, lembra Pacagnella. Já os dados climáticos demandaram um trabalho de curadoria mais refinado, pois os especialistas precisaram conhecer as diversas fontes e a forma como coletaram e processaram as informações. “Por conta da crise climática, e devido à falta de dados, muitas instituições no mundo criaram seus próprios bancos de dados. Isso gera um volume imenso de material que, muitas vezes, não sabemos como usar”, relata Coltri. A climatologista comenta, ainda, que muitos levantamentos de dados não são de longo prazo, dificultando uma visão completa da situação, além de existirem áreas do país onde não há coleta de dados. “A integração dos bancos de dados está no início. A visão integrada que buscamos ainda deve levar alguns anos.”
‘Praticamente uma gestação’
O Projeto Climaterna pretende ser uma referência para o olhar integrado em relação à saúde, inspirando novos estudos e conscientizando as pessoas sobre a importância de se levar em conta os efeitos das mudanças climáticas no planejamento público. “Se conseguirmos estabelecer um modelo climático que tenha associação com os nascimentos prematuros, podemos predizer, por exemplo, que, em momentos nos quais houver ondas de calor na região de Campinas, pode ocorrer um aumento de nascimentos prematuros”, explica o coordenador. “Dessa forma, podemos avaliar como está a distribuição de leitos de UTI [unidade de terapia intensiva] neonatal na rede hospitalar, por exemplo.”
Pacagnella e Coltri também destacam a necessidade de uma abordagem interdisciplinar e de uma integração entre especialistas de diversos setores em torno de um objetivo comum. “No meu ponto de vista, são oportunidades como essa em que conseguimos vivenciar a universidade de forma plena”, afirma o professor, lembrando que o projeto envolveu o trabalho direto de 20 docentes e pesquisadores, incluindo Cristiano Torezzan, Breno de França e Everton Lima, da Unicamp, e Alexandre Xavier, da Ufes, e que levou, em uma feliz coincidência, nove meses para ser desenvolvido. “Essa foi praticamente uma gestação”, comentou.