Ao contrário do que propôs há três décadas o filósofo e cientista político Francis Fukuyama, ao defender, no livro O Fim da História e o Último Homem, que a democracia liberal e o progressismo seriam o destino derradeiro da humanidade, paira atualmente sobre o mundo uma tensão incessante. A polarização entre os Estados Unidos e a China, o agravamento dos conflitos no Oriente Médio e a escalada do autoritarismo em diversos países compõem uma caótica conjuntura global, marcada por crises que se sobrepõem e se conectam. Para fomentar reflexões sobre os desafios e as especificidades dos dias atuais, esta edição do Jornal da Unicamp traz análises sobre as circunstâncias e os fatores envolvidos nesse árido panorama – temas de dois livros lançados recentemente pela Editora da Unicamp.
Na coletânea O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra, os desafios contemporâneos são examinados por 19 autores, que discutem seus efeitos e possíveis saídas.
A obra traça relações entre a hegemonia neoliberal, a erosão da sociedade e a crise da democracia para descrever o cenário desenhado a partir do retorno de uma geopolítica global bipartida e da ascensão do autoritarismo, além de explorar as reverberações dessa conjuntura no Brasil, no restante da América Latina e em todo o planeta. Esta reportagem tem como base uma conversa com Cicero Araujo, filósofo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos organizadores do livro, e com Carlos Etulain, economista, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp e autor de um dos capítulos.
Na sequência, nas páginas 6 e 7, o filósofo francês Pierre Dardot analisa o neoliberalismo enquanto razão que organiza a sociedade contemporânea e fala de A Memória do Futuro: (Chile 2019-2022), obra na qual recupera a história da ditadura chilena, comandada por Augusto Pinochet, e a instalação de seu projeto neoliberal, para interpretar o fracasso, em 2022, da iniciativa de elaboração de uma nova Constituição naquele país. As entrevistas ocorreram durante o II Seminário Discutindo o Brasil e o Mundo, promovido pela Editora da Unicamp.
Fragmentos de um mundo em convulsão
Organizado pelos professores da Universidade de São Paulo (USP) André Singer, Bernardo Ricupero, Cicero Araujo e Fernando Rugitsky, o livro O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra contempla um mundo em agonia, tomado por insegurança e indefinição. Seus capítulos destacam problemas críticos da atualidade, cujos rumos ainda são incertos, embora suas consequências já se mostrem palpáveis, conforme indicam as tensões que ameaçam desde os valores democráticos até a vida no planeta.
A volta da bipolariazação geopolítica e a consolidação do autoritarismo servem de tema central para a obra, costurando suas três partes. As consequências da desagregação social decorrente da supremacia do neoliberalismo são abordadas na abertura da publicação; em seguida, os capítulos tratam das implicações da nova ordem global para a América Latina. A busca, no pensamento de teóricos brasileiros, por respostas para as questões levantadas encerra o livro.
Além de viabilizar a publicação, o apoio da Reitoria da Unicamp possibilitou a realização, por Etulain, de uma pesquisa in loco sobre os desmembramentos do Plano Biden. Em um capítulo assinado pelo docente e pelo pesquisador mexicano Jorge López Arévalo, da Universidade Autônoma de Chiapas (México), há uma análise sobre o programa econômico intervencionista do democrata norte-americano e de suas reverberações no contexto mundial.
Um dos organizadores da coletânea, Araujo explica que o título do livro é inspirado no clássico A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e na ideia do segundo círculo do inferno. A imagem serve, na coletânea, de metáfora para ilustrar o acirramento do quadro desolador deixado pela economia neoliberal, sobretudo nos países centrais. Um contraste em relação à China, que aproveitou a oportunidade para expandir sua indústria e sua atuação internacional. “Embora internamente tenha praticado políticas diferentes, a China se beneficiou da era neoliberal. Olhando para o desempenho da sua economia e sua sociedade, vê-se o país surgindo como a oficina do mundo, o grande polo industrial, com um crescimento econômico gigantesco.”
A vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, serve de marco para o livro. Sob comando, pela primeira vez, de um presidente extremista, o país experimentou uma regressão autoritária, ao mesmo tempo em que endureceu suas relações com a China – já então promovida a potência industrial e econômica mundial.
De acordo com Etulain, o republicano fez de sua política externa uma bandeira ideológica e passou a interferir nas relações comerciais que eram, até então, bem azeitadas. “Trump aplicou taxas e tarifas à importação chinesa utilizando argumentos marcados por um tom bélico, muito próximo do discurso de ódio que defendia e que se espalhou pelo mundo. Algo, aliás, bem conhecido aqui, no Brasil”, afirma.
Ao mesmo tempo que potencializa o risco de uma escalada bélica, a tensão entre os dois países impõe a necessidade de novos alinhamentos, o que pode ampliar a importância dos Estados. Fortalecidos, certos países se beneficiariam no palco das negociações internacionais. Para a América Latina, a reconfiguração sinaliza uma possibilidade de reindustrialização, em razão da disputa entre as duas grandes potências.
O Brasil, tradicionalmente pragmático quando se trata de política externa, reúne condições de ganhar maior destaque como liderança regional, concordam os dois professores. “Com Lula [o presidente Luiz Inácio Lula da Silva], o país tem conseguido jogar com o conflito e se manter neutro. Negocia com a China, que tem investimentos no país, mas, ao mesmo tempo, para os Estados Unidos, demonstra interesse em participar da indústria dos chips. Trata-se de uma situação ambígua. Embora essa situação seja perigosa e problemática, oportunidades se apresentam”, diz Araujo.
Diante da conjuntura, Etulain põe em xeque a própria classificação do Brasil como país periférico. Sua dimensão continental, aliada à sua abundância de recursos e riqueza cultural, garantem seu status de potência econômica. “[O Brasil] é um país com uma capacidade de rápido crescimento e de se recriar apesar das crises, dos problemas e do lastro de desigualdade e pobreza que carrega. Portanto, se bem governado e bem administrado, pode ser muito promissor.”
A habilidade brasileira para dialogar com o restante do mundo o diferencia, por exemplo, da Argentina, compara o economista, referindo-se sobretudo ao atual governo de Javier Milei, que escolheu o confronto e preferiu rejeitar a China, além de recusar a participação nos Brics (organização intergovernamental formada por vários países, entre os quais Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Graças a essa vocação, o governo brasileiro pode atrair fundos e investimentos que impulsionariam um ciclo de gastos, gerando benefícios sociais e melhorando a vida das pessoas, argumenta Etulain. Saindo de um processo de desindustrialização e desinvestimento, o Brasil tem um desafio a enfrentar, pois fazer política econômica envolve conflitos de interesse, debates políticos e implementação de medidas.
Por outro lado, a combinação brasileira de disponibilidade de recursos com uma conjuntura marcada pelo atraso, além da dificuldade de inserção nas cadeias globais de produção, exige a definição de políticas econômicas para produção, infraestrutura, investimentos e gastos. “Lula, com muita habilidade política, sabe aproveitar deste momento em que se estreitam as margens de negociação”, opina.
Na esfera internacional, a relevância do Brasil não se limita ao seu potencial como provedor e consumidor de mercadorias e serviços. Quando acionado como mediador de conflitos ou para atuar como agregador, o país se destaca. Mais do que suas ações no jogo das grandes potências, como nas tentativas de interceder nas guerras da Ucrânia e na Faixa de Gaza, é na América Latina que sua atuação se faz mais estratégica, defende Araujo.
A postura do governo Lula diante do desfecho da última eleição presidencial na Venezuela é citada pelo professor da USP como exemplo do tipo de liderança que o governo brasileiro pode exercer sobre seus vizinhos, uma liderança pautada pela negociação e pela defesa dos preceitos democráticos. Mesmo no caso de antigos aliados.
“Ao dizer que era preciso garantir eleições limpas e livres, o Brasil adotou uma postura assertiva, sem precisar fazer alinhamento com a oposição [venezuelana]. E mostrou, assim, serem mais importantes, do que saber se quem está governando o país alinha-se à direita ou à esquerda, a preservação e a promoção das regras democráticas.”
Interregno
O conceito de “interregno”, emprestado do pensador italiano Antonio Gramsci, surge no livro para traduzir a indefinição e a instabilidade que pairam sobre os tempos atuais. Um cenário que começou a se desenhar em 2008, com o crash da economia, e se materializou com o abalo do ideário democrático. Ao contrário do que aconteceu em crises anteriores, quando países periféricos viram-se tomados por ditaduras, desta vez o colapso se deu justamente onde as instituições democráticas pareciam sólidas, confiáveis e socialmente evoluídas.
“Qualquer coisa que acontecesse na política dos Estados Unidos já causaria um efeito no resto do mundo, por envolver a maior potência estatal do planeta. Especialmente nesse caso, ainda houve uma enorme consequência simbólica, pois se trata de um dos berços, senão o berço, da experiência democrática moderna”, analisa Araujo. O epicentro da crise, exatamente onde os cientistas políticos tinham como certos o desenvolvimento e a estabilidade do sistema democrático, borrou politicamente as diferenças entre os Estados tidos como centrais e periféricos.
A origem dessa turbulência, segundo as análises presentes no livro, relaciona-se com uma deterioração provocada pelo sistema neoliberal. Embora as grandes empresas norte-americanas tenham se beneficiado da globalização da economia, que permitiu a distribuição de seus produtos mundo afora, a classe trabalhadora desses países sofreu com o desemprego, e o governo, consequentemente, perdeu legitimidade interna.
Instalou-se assim uma conjuntura propícia para a eclosão de forças políticas autoritárias, observa Etulain. “Houve uma contribuição da ordem neoliberal para desalinhar o tecido social, criando um ambiente favorável ao surgimento de condutas antipolíticas que corroem o ethos da democracia. As queimadas que tomaram conta do Brasil no inverno são emblemáticas dessa situação. Não à toa, são causadas por forças humanas interessadas simplesmente em ampliar a fronteira agrícola, por exemplo.”
A ascensão da extrema direita no mundo, esclarece o economista, não pode ser considerada a causa desse quadro. Trata-se, na verdade, de uma consequência do desgaste dos valores democráticos, um fenômeno evidente tanto no discurso de ódio como na descrença generalizada em relação aos governos e a sua capacidade de conduzir a economia.
Portanto, conclui Etulain, a ameaça à democracia não estaria nas discussões acaloradas entre a esquerda e a direita, afinal, embates de ideias fazem parte do jogo político. O perigo, alerta, estaria na destruição dos princípios construídos pela humanidade para formular seus acordos e viver em paz. “Partilhando os frutos do progresso”, conclui.
A solução contra a falência da democracia, segundo a avaliação dos docentes, depende de os governantes e as nações conseguirem romper com a posição que causou seu estremecimento. Um processo longo e hoje dificultado pelo aumento do pessimismo e do mau humor da população mundial, observa Araujo. “Há um componente psicossocial na crise, que não favorece a superação do quadro.”
Apesar do desemprego, do empobrecimento generalizado e da perda de direitos, o filósofo pondera que a ordem capitalista não vem sendo questionada. Ao contrário, sofreu uma naturalização, como se tivesse se tornado parte da paisagem. É o que indicam as discussões em torno de alternativas para sanar a crise contemporânea.
“Curiosamente, as soluções aparentemente mais realistas são aquelas que surgem dentro do capitalismo. Um exemplo é a ideia de transformar a natureza em um negócio, por exemplo. Ou mudar completamente a indústria automobilística e fabricar carros elétricos. O raciocínio: se consigo converter o enfrentamento dos danos ao meio ambiente em um projeto compatível com o capitalismo, posso fazer essa agenda prosperar.”
KEYNESIANISMO À LA BIDEN
Desde sua implantação em 2021, o Plano Biden investiu o equivalente a três produtos internos brutos (PIBs) do Brasil na economia e na sociedade norte-americanas. Descolando-se do restante do mundo capitalista, o presidente democrata elegeu o pensamento keynesiano como norte para construir um programa de intervenção econômica focado no desenvolvimento de infraestrutura, indústria e tecnologia, na geração de empregos e no financiamento de políticas sociais, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. Contrariando, portanto, o receituário neoliberal incensado pela mídia e o mercado financeiro, cuja supremacia, nos Estados Unidos, datava dos anos 1980.
Etulain destaca que uma iniciativa do tipo mostra-se rara na história do país, tradicional defensor do Consenso de Washington, do Estado mínimo, dos ajustes e dos cortes de gasto. Entretanto não é inédita. Após o crash da bolsa em 1929, o Estado encampou sua maior empreitada intervencionista, o New Deal. “Sem isso, os Estados Unidos não teriam se tornado o país do pleno emprego, no pós-guerra. Com o Plano Biden, estão demonstrando, como antes, que as economias são capazes de crescer e liderar processos virtuosos de produção e de renda fazendo política econômica”, afirma.
Entre fevereiro e abril deste ano, o professor da FCA observou de perto o comportamento do programa de Biden – no livro, algo associado à ideia de um novo americanismo.
A partir de sua pesquisa, que envolveu a realização de entrevistas com pesquisadores e especialistas de diversas instituições, como o Banco Mundial e a Universidade de Columbia, Etulain observou uma melhora na condição de vida das pessoas. “Mesmo com a desidratação do plano, em função da oposição republicana, implementaram-se políticas sociais de grande efeito, em grande volume, se comparamos com as de outros países”, afirma.
Sua análise destaca a importância simbólica do Plano Biden para o mundo por, afinal, indicar o rompimento, por parte do líder global, com o sistema que havia se transformado em sinônimo da economia norte-americana e que passou a ser adotado praticamente por todos os atores da esfera capitalista. “O receituário neoliberal é a antipolítica econômica, como se a economia pudesse existir por si própria. A experiência do século 20, no entanto, comprova ser preciso gerir as economias.”
A principal contribuição do programa do atual presidente norte-americano, conclui o professor da FCA, é mostrar para os demais países a necessidade de empregar uma política econômica que privilegie gastos públicos para impulsionar a indústria sustentável internamente e gerar renda. Em um momento de disseminação de discursos afeitos à extrema direita, que acusam iniciativas intervencionistas de pôr em risco o controle da inflação e a austeridade fiscal, o exemplo dos Estados Unidos revela-se significativo especialmente para os países ditos periféricos, onde a desigualdade social é ainda maior.
‘Precisamos romper com a racionalidade neoliberal’
‘Precisamos romper com a racionalidade neoliberal’
O filósofo francês Pierre Dardot analisa como a subjetividade mercadológica impacta as relações sociais e a democracia
O filósofo francês Pierre Dardot analisa como a subjetividade mercadológica impacta as relações sociais e a democracia
Ao assumir a Presidência da República na Argentina, em dezembro de 2023, Javier Milei pôs em curso um projeto ultraliberal. Com a justificativa de reorganizar o país e solucionar sua grave crise econômica, emitiu decretos e projetos de lei promovendo desregulamentações, privatizações e outras mudanças na estrutura do Estado argentino. Também houve uma reorganização dos ministérios, agora reduzidos a apenas oito. Temas como infância e adolescência, educação, trabalho, seguridade social e cultura ficaram reunidos sob o novo Ministério do Capital Humano. Mais do que um projeto econômico, uma nova mentalidade passou a governar os nossos hermanos.
Pensar o neoliberalismo na qualidade de uma lógica que orienta a organização social e impõe uma nova subjetividade aos cidadãos é o trabalho de Pierre Dardot, filósofo francês e pesquisador da Universidade Paris-Nanterre. Na entrevista a seguir, o estudioso explica como governos de direita e de esquerda perpetuam a racionalidade neoliberal, analisa a atualidade latino-americana e ressalta a importância de novas experiências que fortaleçam a democracia.
Jornal da Unicamp – Suas análises partem de uma leitura do neoliberalismo enquanto razão que organiza a sociedade. Gostaria que o senhor explicasse essa ideia.
Pierre Dardot – Minha ideia se distingue da análise habitual de considerar o neoliberalismo como uma política econômica. Quando escrevi A Nova Razão do Mundo (Editora Boitempo, 2016) com Christian Laval, entre 2009 e 2010, éramos vozes solitárias no campo intelectual, porque não havia um discurso do tipo em voga. A diferença é a seguinte: não falamos apenas de uma razão que orienta a formulação de uma política econômica. Quando falamos que o neoliberalismo constitui uma política econômica, consideramos a política do governo militar do Chile, por exemplo, ou do governo de Valéry Giscard d’Estaing, que comandou a França entre 1974 e 1981, ou mesmo de governos recentes. Trata-se de um cenário em que existe uma ideologia, e o governo é levado a aplicar uma política ditada por essa ideologia.
A ideia de racionalidade é diferente. Antes de tudo, essa é uma lógica que organiza as práticas. Para nós, essa ideia revela-se muito importante porque não podemos pôr fim a uma racionalidade da mesma forma como a um governo. Podemos mudar quem está no governo, mas a racionalidade pode continuar sempre a mesma. Isso é importante porque indica que precisamos romper com a racionalidade neoliberal, não apenas com a política neoliberal. Essa política materializa uma ideia de concorrência mercadológica a organizar as relações sociais, a conduzir o funcionamento do Estado. Quanto mais o Estado interioriza as normas da concorrência, do direito privado, mais ele se torna neoliberal de forma orgânica. Não se trata de uma ideologia em primeiro lugar, nem de uma política econômica. Essa é, em primeiro lugar, uma lógica total, uma lógica de práticas.
JU – O senhor acredita que o cenário da América Latina favorece a consolidação dessa racionalidade neoliberal?
Pierre Dardot – A região é um terreno favorável [para isso]. Nunca podemos nos esquecer que a América Latina desempenhou um papel de laboratório das políticas neoliberais elaboradas pelo Fundo Monetário Internacional para o continente. Isso teve início com o Chile, durante a ditadura de Pinochet, mas o continente como um todo serviu de laboratório do neoliberalismo. Em 1975, os chamados Chicago Boys assumiram a economia chilena e reformaram completamente o país. Pinochet, no entanto, tinha perfeitamente clara a consciência de que não se tratava apenas de uma questão de política econômica. Jaime Guzmán, que elaborou o projeto da Constituição Chilena de 1980, dizia que o objetivo não era mudar apenas a política econômica, mas transformar todas as relações sociais. Em 1976, houve o golpe civil-militar na Argentina. É interessante notar que as duas ditaduras se apoiaram no neoliberalismo. Porém, no que diz respeito à racionalidade neoliberal, a Argentina foi menos eficaz. No Chile, até hoje existe uma subjetivação neoliberal muito mais avançada que na Argentina, e isso mesmo depois do surgimento de personagens como Javier Milei. Foram 40 anos de dominação neoliberal no Chile. Pinochet deixou o poder em 1990, no entanto, como dizem os chilenos, o pinochetismo ainda não foi embora.
O governo que sucedeu Pinochet, o governo da chamada Concertación, uma coalizão de três partidos, não pôs fim à Constituição de 1980. Os governos da Concertación seguiram até 2013, quando a coalizão ruiu durante a presidência de [Sebastián] Piñera. Piñera não fazia parte da Concertación, mas seu sistema era concertacionista, já que se apoiava nos acordos entre os partidos, algo horrível, porque coloca os cidadãos de lado. Essa lógica permanece no Chile, de um certo ponto de vista. Mesmo [Gabriel] Boric não foge da lógica da Concertación.
JU – Aqui no Brasil tornou-se comum o discurso de pessoas que defendem ser empreendedores de si mesmos e de que o Estado seria um obstáculo para seu sucesso. Essa é uma forma de consolidação dessa subjetividade neoliberal?
Pierre Dardot – Penso que a subjetivação neoliberal no Brasil tem bases históricas diferentes. A ditadura militar de 1964 não foi neoliberal, mas uma ditadura nacional-desenvolvimentista. No Chile, tudo ocorreu ao mesmo tempo e isso faz uma diferença considerável. Penso que [Jair] Bolsonaro se beneficiou desse cenário. Essa subjetivação que você menciona, dos empreendedores de si mesmos, surgiu antes de sua ascensão ao poder, em 2018. Nós sempre temos a ilusão de ser a ascensão ao poder de um governante que cria as condições de subjetivação neoliberal. Mas nem sempre.
Penso ser importante essa questão, sobre como a subjetividade neoliberal ocorre no Brasil, a fim de pensarmos novas maneiras de enfrentá-la e experimentar novas formas de luta e de democracia. A esquerda brasileira baseia-se muito no poder federal central. Isso resulta em algo contraproducente, principalmente se considerarmos a situação atual do terceiro governo de Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], porque ele não tem maioria no Congresso. A maioria é formada pela direita e pela extrema direita. Sobra uma margem de manobra muito estreita. Nessa situação, a esquerda precisa reinventar suas formas de intervenção ao invés de se prender a uma espécie de projeção imediata em escala federal. No Brasil, a esquerda tende a pensar que, a partir do momento em que chega ao governo federal, pode transformar tudo. E, sim, muitas coisas foram feitas. Contudo a situação atual mostra-se difícil. Não podemos esperar a ação do governo federal.
JU – O senhor faz uma crítica à postura das esquerdas, que buscariam sempre o consenso entre os partidos, o que faz com que o pêndulo do poder se aproxime cada vez mais da direita. É o caso de países da América Latina em que a esquerda está no governo, como no Brasil, na Colômbia, com Gustavo Petro, ou no México, até recentemente com Andrés Manuel López Obrador?
Pierre Dardot – López-Obrador é um caso diferente. Ele é muito popular, mas tende ao autoritarismo. Ele esvaziou as instituições de defesa dos direitos humanos e as enfraqueceu. No meu ponto de vista, isso não é uma democracia. Petro atua de forma diferente. Acho interessante que, pelo menos no início, foi diferente de Boric no Chile, que expressou o espírito do concertacionismo por meio dos acordos com outros partidos. Petro, não. Ele comprou uma briga com os juízes do país que começaram a fazer acusações contra ele, algo clássico na América Latina. Sua resposta distoa da de Boric, algo diferente do que acontece no Brasil. Essa foi uma resposta ofensiva. Ele chamou seus partidários a protestarem, houve manifestações importantes contra a ofensiva dos juízes. Acredito que ele foi corajoso e não expressa nem um pouco o espírito da Concertación, uma atitude bem diferente da esquerda chilena, por exemplo, ou mesmo dos partidos de esquerda brasileiros. Penso ser preciso que as esquerdas se renovem e tenham um espírito mais ofensivo, porque hoje a grande dificuldade é o fato de as esquerdas estarem na defensiva. É necessário se opor com uma lógica diferente, contra a racionalidade neoliberal.
JU – E, neste contexto latino-americano, como interpretar e lidar com a situação da Venezuela de Nicolás Maduro?
Pierre Dardot – Esse quadro é uma tragédia para a Venezuela e para toda a América Latina. Na verdade, o que acontece lá decorre da erosão democrática de todo o continente, não sendo apenas uma consequência do cenário interno do país. Precisamos reconhecer que [Hugo] Chávez tinha um caráter autoritário em sua forma de governo, mas diferente de Maduro. Desde a morte de Chávez, a situação mudou completamente. Maduro está no poder desde 2013 e acredito que, pelo menos alguma vez antes deste último pleito, já tenha perdido as eleições. No entanto continua no poder de forma obstinada e, para isso, tornou-se ainda mais autoritário. Isso é trágico porque, francamente, se sou um cidadão venezuelano, não sei o que fazer em um cenário no qual preciso escolher entre María Corina Machado e Maduro. Atualmente, o regime venezuelano é totalmente autoritário e as mínimas formas de participação popular que existiam durante o governo de Chávez acabaram suprimidas. Por outro lado, Corina Machado é pró-Milei. Ela considera boas as políticas de Milei. De um lado, há uma extrema direita neoliberal e, de outro, alguém que tenta representar uma sobrevida do chavismo, mas que, na verdade, entrega uma ditadura populista.
JU – Em sua obra, o senhor atribui parte dos problemas que ocorrem na América Latina ao modelo presidencialista adotado pelos países e defende a democracia deliberativa. Como um sistema desse tipo funcionaria?
Pierre Dardot – Eu me apoio nas ideias do jurista argentino Roberto Gargarella. No entanto, para mim, a verdadeira democracia é uma extensão da prática da deliberação coletiva. Para compreender essa ideia, temos de repensar a lógica da separação de poderes. Por exemplo, da Suprema Corte dos Estados Unidos participam juízes indicados pelo presidente, que leva em conta a postura desses juízes, como ser contra ou a favor do aborto. Isso não é democrático. Esse não pode ser o Poder Judiciário de uma democracia. Na visão do constitucionalismo deliberativo de Gargarella, um tribunal constitucional não pode modificar a ou decidir sobre a constitucionalidade de uma lei sem considerar a vontade dos cidadãos. Nessa perspectiva, um tribunal constitucional deve articular a intenção dos poderes com a vontade popular por meio de referendos. Por esse ponto de vista, essa é uma democratização radical.
A tentativa recente de reformar a Constituição chilena é uma aplicação do princípio da deliberação coletiva. No entanto aconteceu uma experiência fechada, que não atingiu o conjunto da população. Houve discussões apenas entre determinados setores, não com o conjunto da sociedade. A Constituição resultante desse processo foi muito vanguardista. Por exemplo, inclui-se no texto a questão da identidade não binária de gênero. Mas será que isso deve constar em uma Constituição? Na minha visão, houve um exagero. A ideia era que essa fosse uma Constituição dos movimentos sociais. O resultado, porém, foi que esses movimentos afastaram-se da sociedade, levando ao fracasso do processo. Quando se utiliza o recurso da deliberação coletiva, precisamos ter cuidado para não fazer recortes da sociedade. Estima-se que 25% da população chilena tenha participado de protestos entre 2019 e 2021. Ao negligenciar toda a extensão da sociedade, é inevitável uma volta ao ponto de partida. Foi justamente o que aconteceu no Chile.
JU – O senhor acredita que as práticas de deliberação coletiva são uma forma de frear o avanço da racionalidade neoliberal?
Pierre Dardot – A deliberação coletiva é uma forma de criar brechas, o que já é importante. No entanto, para pensarmos no fim da racionalidade neoliberal, temos de projetar um horizonte temporal muito amplo, uma vez que a razão neoliberal é global. As ações de movimentos sociais e os intercâmbios entre movimentos de países diferentes, que levam a práticas transfronteiriças e a alianças transnacionais entre movimentos, revelam-se fundamentais. A razão neoliberal, porém, é uma razão global. Não podemos resolver essas questões apenas dentro dos limites nacionais, porque em tudo há a razão neoliberal. Veja o exemplo do Estado chinês. Não se trata de um Estado neoliberal, mas o país joga um jogo de razão neoliberal. Há um método para manter o Estado centralizado, ditatorial, há uma grande vigilância sobre os cidadãos, o que é terrível. Contudo, ao mesmo tempo, vemos uma inserção do Estado chinês no jogo da racionalidade neoliberal. Essa é uma situação muito complexa, e a China oferece um bom exemplo disso.