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Vestígios que rompem o silêncio

Artista plástico reinterpreta materiais do regime militar para refletir sobre memória e história

Detalhe da obra “Retrato Oficial”, de Pagatini: impressão UV sobre pregos de aço inox, baseada no retrato oficial de João Baptista Figueiredo, presidente do Brasil de 1979 a 1985

Artista plástico reinterpreta materiais do regime militar para refletir sobre memória e história

“Os meus pais nunca falaram de ditadura militar para mim, nunca narraram suas experiências desse período. Por que esse silenciamento?”, indagou Rafael Pagatini durante muitos anos de sua vida. O artista plástico e professor de gravura na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) batizou a circunstância de “processo de ausência da narrativa” e transformou a inquietação em tese de doutorado no Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

Em sua pesquisa, Pagatini investiga as dinâmicas entre arte, história e direito, questionando como essas áreas se alimentam mutuamente e quais suas fronteiras e intersecções. Por meio de uma abordagem que mescla teoria e prática, o artista plástico produziu cinco obras que exploram o imaginário construído em torno das memórias da ditadura militar brasileira. A pesquisa recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2024, no programa de artes visuais.

Ao problematizar as memórias da ditadura no contexto contemporâneo a partir de procedimentos artísticos, o agora doutor desconstrói o imaginário de progresso constante das peças de propaganda do governo militar brasileiro ao mesmo tempo que propõe um método de construção do conhecimento ancorado no pensamento artístico.

“Quando falo sobre imaginário e afetos, refiro-me à construção simbólica das palavras, como a equivocada ideia de que o golpe de 1964 foi uma ‘revolução’, termo muitas vezes utilizado de maneira quase inconsciente como algo positivo. Ao longo da tese, busco desconstruir essa construção discursiva”, explica o pesquisador.

A partir de fotografias, jornais antigos, imagens e documentos que funcionam como vestígios e memórias da ditadura militar, Pagatini explora as intersecções entre história e direito, com o objetivo de mostrar como essas áreas se manifestam na criação artística. O estudioso sublinha que, além de absorver as reflexões dessas disciplinas, o artista também contribui, por meio de sua produção, com novas perspectivas. “Até que ponto, como artista, posso dialogar e enriquecer essas discussões?”

Reflexos contínuos

A figura do artista, diz Pagatini, também se insere nesse contexto de ausência de relato oral. Sob essa perspectiva, o pesquisador identifica reflexos contínuos da ditadura, cujo efeito é “uma influência que persiste no imaginário de parcela significativa da população”. A análise se expande a fim de refletir sobre as formas de transmissão dessas memórias para as gerações posteriores e sobre como ocorre o processo de apropriação dessas histórias.

“Abro a tese explorando a complexidade das relações entre história e memória, desconstruindo o conceito de ‘memória benevolente’, do historiador Carlos Fico. Aqueles eram tempos de chumbo, mas as pessoas insistem em retratá-los como anos dourados”, diz.

Pagatini pesquisou processos jurídicos históricos, como o Tribunal de Nuremberg (1945-46) – que julgou líderes nazistas –, para compreender a transformação da vítima em testemunha da história. No Brasil, não houve julgamento dos torturadores da repressão militar, ao contrário do que aconteceu na Argentina, por exemplo.

Tendo feito graduação e mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pagatini escolheu a Unicamp para realizar seu doutorado, sob orientação da professora Luise Weiss, que já era uma referência artística sua. Hoje, o pesquisador é professor na Ufes, onde dá aula de gravura, a mesma disciplina de sua orientadora.

A orientadora Luise Weiss: “De alguma forma, nós lutamos contra o esquecimento”

Escavando memórias

“Tenho uma afinidade grande com o trabalho do Rafael na questão da memória e do esquecimento. É sobre aquilo que a gente vai escavando, tentando entender melhor. A questão que fica é sobre quais imagens também têm que falar. São vestígios. De alguma forma, nós lutamos contra o esquecimento”, afirma a professora.

“Eu vejo como uma necessidade esse papel do artista de trazer a memória e questionar, porque a história vem sempre filtrada. Sobre o período do golpe [1964], por exemplo, não sabemos tudo. Do genocídio indígena, também não, nem do Holocausto, nem da Palestina. O artista não precisa descrever, mas traduzir nas artes visuais para fazer pensar ou sentir marcas desse passado”, defende Weiss.

Pagatini produziu cinco trabalhos artísticos na tese: “Bem-vindo presidente”; “Dops”; “Manipulações”; “Camadas”; e “Retrato Oficial”. O primeiro faz referência aos anúncios publicados nos jornais de Vitória (ES), nas décadas de 1960 a 1980, dando boas-vindas aos presidentes generais na inauguração de grandes empreendimentos.

“Os anúncios promoviam a ideia de um Brasil promissor, uma narrativa que foi apropriada pelo regime militar.” Alguns anúncios dessa instalação constam de uma ação movida pelo Centro Europeu pela Constitucionalidade dos Direitos Humanos, em auxílio ao Ministério Público de São Paulo (MPSP), contra a Volkswagen, a qual, durante a ditadura, permitiu que em suas instalações no Brasil ocorresse a prática de tortura. Em 2019, Pagatini realizou uma exposição em Berlim (Alemanha) a convite do Centro Europeu. O pesquisador elaborou parte do seu doutorado naquele país, especificamente em Hannover.

Na obra “Manipulações”, Pagatini utiliza a imagem de um Volkswagen Fusca em chamas, capturada nas redes sociais durante as manifestações de 2013. “Fiz uma grande xilogravura em um compensado, mesmo material usado nas fachadas dos bancos com vidros quebrados. A ideia era conectar essa materialidade das manifestações à imagem simbólica do Fusca, o mesmo carro em que [Carlos] Marighella foi morto em uma emboscada; e também à explosão do Jaguar no Riocentro.”

O artista plástico e pesquisador Rafael Pagatini: desconstruindo a ideia de uma ditadura benevolente

No trabalho “Retrato Oficial”, impressão sobre mais de 11 mil pregos de aço fixados em uma parede, Pagatini utilizou como referência os retratos oficiais dos presidentes do Brasil, desde 1889, reunidos no Palácio do Planalto. Todos os militares titulares do cargo usaram seu uniforme na foto oficial, menos os generais que assumiram a presidência entre 1964 e 1985. “Isso não é por acaso”, aponta.

Em sua obra “Dops”, o artista-pesquisador abre a possibilidade de interação com o público, utilizando fotos produzidas por um policial de Vitória (ES) a serviço do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). No verso das fotos o policial identificou os suspeitos classificados como subversivos, indicando características das roupas que vestiam, como, por exemplo, a cor das camisetas. Uma reação química deixou todas as roupas da mesma cor.

“O público é convidado a identificar a legenda correta para cada foto, percebendo, assim, que sob o olhar do agente e do Estado brasileiro todas as pessoas ali representadas eram vistas como potencialmente subversivas. O que mais causa indignação é que essas pessoas, rotuladas como subversivas, continuam sendo consideradas inimigas, de acordo com as leis vigentes, já que a Justiça nunca condenou os torturadores. Essa falha jurídica perpetua esses estigmas e injustiças em nosso imaginário coletivo.”

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