Jovens, vulneráveis e com sequelas
Psiquiatra traça perfil de vítimas de violência sexual com base em prontuários de 1.133 mulheres atendidas na Unicamp
O Brasil registrou um estupro a cada seis minutos em 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – trata-se de uma violação com sérias implicações para a saúde física, social e psíquica das vítimas. A cidade de Campinas dispõe de uma rede estruturada para cuidar de casos de violência sexual que engloba o Ambulatório de Atendimento Especial do Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism) da Unicamp. Do estabelecimento, objeto de uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), foram avaliados os prontuários de 1.133 mulheres atendidas entre 2011 e 2018. O estudo identificou o perfil sociodemográfico das pacientes, a tipificação dos casos de violência e os sintomas apresentados.
A análise estatística descritiva e quantitativa dos dados apontou que a maioria das pacientes no período tinha menos de 26 anos, era branca, solteira e sem filhos e possuía entre 9 e 11 anos de escolaridade e ocupação regular. Isso corrobora o fato de que as mulheres mais jovens compõem também o grupo mais vulnerável – 39% delas, adolescentes.
A pesquisa constatou, ainda, que cerca de um quinto das pacientes (20,4%) já havia sofrido outro tipo de violência e que 66% das adolescentes não tinham experiência sexual antes do crime. “O que representa, na vida dessa menina, começar a sexualidade dessa forma?”, pergunta a orientadora da pesquisa, a professora e psiquiatra Renata Cruz Soares de Azevedo.
Para a também psiquiatra e autora do trabalho, Maria Teresa Ferreira Côrtes, essa realidade implica pensar em uma estrutura diferenciada para o atendimento desse público e dos familiares das vítimas, sua rede de suporte.
Já em relação às características dos casos de violência sexual, a dissertação conclui que eles ocorreram predominantemente de forma aguda (evento isolado, não crônico), em ambientes públicos e perpetrados por um agressor desconhecido. As características evidenciam um panorama de violência, visto que 88,3% das pacientes falaram ter sofrido algum tipo de intimidação, sendo comum o uso de força física, com arma de fogo ou com arma branca.
“Também encontramos taxas muito altas de agressões por via anal [26,4%] e 13,9% de estupros coletivos. Esses são números muito altos, mas que infelizmente estão dentro das médias nacionais”, diz Côrtes.
Nesse contexto, o atendimento imediato (até 72 horas depois da ocorrência) revela-se fundamental para a realização da profilaxia, evitando infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e gestações. “A maior parte das nossas pacientes chega nas primeiras 48 horas, o que é ótimo”, revela Azevedo.
No entanto parte das vítimas, cerca de 20% das adolescentes, procuraram o serviço passados cinco dias do ato violento, quando as medidas preventivas não oferecem a mesma eficácia. A orientadora esclarece que a vítima pode buscar diretamente o pronto atendimento do Caism (Rua Alexander Fleming, nº 101, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, Campinas), que funciona 24 horas por dia, sem necessidade de encaminhamento médico ou registro policial.
Saúde mental
Desde 2006, o ambulatório oferta atendimento psiquiátrico, o que permite estudar, ainda, as consequências do abuso na saúde mental das vítimas. O atendimento especializado se inicia no primeiro comparecimento ambulatorial e segue pelo prazo máximo de seis meses. Do total de pacientes que foram ao pronto-socorro, 65,5% passaram por avaliação psiquiátrica. Desse grupo, metade apresentou sintomas de ansiedade e depressão. Apresentaram-se comuns também casos de alteração de sono e de sentimento de culpa ou vergonha decorrente da violência. Além disso, um quarto delas relatou ter sofrido apagamento, o esquecimento parcial ou total do evento violento.
A pesquisa analisou apenas o primeiro atendimento psiquiátrico e descobriu que as adolescentes costumam apresentar menos sintomas do que as vítimas adultas, o que pode levar à percepção errônea de que elas não estariam sofrendo. “Quando a gente olha para os comportamentos de risco, que são uma forma de externalizar o sofrimento, como os comportamentos suicidas, não temos diferença entre os grupos. Isso levanta a necessidade de ficarmos muito atentos com as adolescentes. Precisamos orientar as famílias sobre as vítimas poderem demonstrar sofrimento de outras formas”, esclarece Côrtes.
O uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas também foi analisado na dissertação. Não houve registro de uma diferença estatisticamente relevante quando comparadas as vítimas adolescentes e adultas, mostrando um crescimento no uso de substâncias por menores de idade, particularmente entre as mulheres.
Conforme Azevedo, a vítimas de ataques ocorridos após o uso de substâncias psicotrópicas costumam ser responsabilizadas, fator que, de certa forma, reduz a carga de culpa do agressor e atrasa a busca por atendimento médico. “Quando há uma intenção do agressor [de dopar a vítima], o veículo é quase sempre a bebida. Então, não necessariamente a paciente bebeu muito. Fazemos o esforço de não culpabilizar as vítimas, mas de fazê-las entender que elas ficam mais vulneráveis em determinadas situações.”
Outra questão inédita no Brasil é o estudo da correlação entre o uso das mídias digitais e os casos de estupro. Avaliaram-se casos em que o contato com o agressor ocorreu, primeiro, via uma mídia digital – seja um aplicativo de encontro, rede social ou outro meio –, culminando, posteriormente, no ato de violência sexual. O estupro facilitado pelo uso de tecnologia mostrou-se três vezes maior entre as adolescentes do que entre as adultas.
“Esse é um número que vamos acompanhar porque tende a aumentar, e isso requer discutirmos mais segurança nas redes, principalmente quando se trata das adolescentes”, afirmou Azevedo, citando outras situações, como quando o ato de violência sexual é gravado e distribuído pela internet, aumentando o sofrimento das vítimas.
Considerando os oito anos analisados, duas situações chamaram a atenção das pesquisadoras: a queda nas taxas de atendimento imediato e a diminuição no comparecimento para tratamento ambulatorial.
“Isso nos preocupa porque mais mulheres estão chegando de forma tardia e não estão fazendo o seguimento sorológico [após a coleta de material para exames] nem recebendo atendimento em saúde mental – pelo menos no nosso serviço”, argumenta Côrtes.
Esses resultados inesperados demandam novos estudos para determinar suas causas. De acordo com Azevedo, a forma como o primeiro contato com a paciente acontece aumenta ou diminui a chance de ela retornar. “Temos que pensar em outros mecanismos para que a paciente entenda a importância de seguir [com o acompanhamento]”, conclui.