O mosaico de sentidos de Luiz Gonzaga
O mosaico de sentidos de Luiz Gonzaga
Músico mostra como o Rei do Baião transformou o conjunto de sua obra em sinônimo do Nordeste
Músico mostra como o Rei do Baião transformou o conjunto de sua obra em sinônimo do Nordeste
Luiz Gonzaga embalou o mestrado do músico Rodrigo Granja, dedicado a investigar a canção como linguagem portadora de significados. A pesquisa de Granja, realizada no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, examina aspectos sonoros, verbais e históricos da obra do cantor, sanfoneiro e compositor conhecido como o Rei do Baião. O estudioso analisou elementos do processo envolvido na transformação simbólica do gênero musical em sinônimo de uma região. Seu trabalho aponta a existência de traços ancestrais e discute a importância das sonoridades para a criação de sentidos. E destaca, ainda, canções que apresentaram ao Brasil diferentes facetas do Nordeste, em contraponto a um preconceito amplamente disseminado pelo país a respeito dessa região.
O trabalho contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Violinista e percussionista, Granja estudou composições que tratam do sertão e do nordestino sob vários ângulos – composições essas assinadas por Gonzaga ora com Humberto Teixeira ora com José Dantas. O pesquisador selecionou peças representativas da construção sonora do gênero, examinando seus elementos verbais e não verbais. Sob a orientação do professor do IA José Roberto Zan, dissecou as versões originais de “Baião”, “Vozes da Seca” e “Paulo Afonso”, além de três registros de “Asa Branca”.
Parte integrante da linha de pesquisa Música, Cultura e Sociedade, desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Música do IA, seu mestrado norteou-se por referências teóricas da história, da sociologia e da análise do discurso. Sobretudo os estudos sobre literomusicalidade coordenados pelo professor de língua portuguesa Nelson Barros da Costa, na Universidade Federal do Ceará (UFC); as reflexões sobre a interação entre melodia e letra feitas pelo músico e linguista Luiz Tatit; e os conceitos de representação (Roger Chartier) e região (Pierre Bourdieu).
O pesquisador articulou a teoria de Chartier – de que a representação resulta do processo de significação do mundo, sendo produzida por indivíduos e grupos com experiências e interesses conflitantes – com o entendimento de que o discurso literomusical extrapola a letra da canção, estando também no seu ritmo, na melodia, nas nuances da interpretação, na combinação instrumental, no tempo e no espaço. Assim, trabalhou com a noção da representação literomusical para a construção de sentidos. “Foi possível buscar os diferentes sentidos que uma mesma composição pode assumir, quando executada em contextos históricos distintos.”
De acordo com o instrumentista, o estudo sobre as diferentes representações do sertão e do nordestino, construídas a partir da linguagem literomusical, revelaram um mosaico de visões sobre a região e seu povo, e isso neste momento histórico, marcado pela polarização da sociedade e pela acentuação de discursos extremistas e de fake news disseminados em redes sociais. “Ao longo de um percurso histórico, as políticas criaram o que se conhece como Nordeste da seca: a imagem do nordestino como um homem preguiçoso e a da região como uma terra pobre, de pessoas que não conseguem tomar a frente das coisas para resolver os problemas. Recentemente, vimos esse discurso de ódio, baseado em segregacionismo, ser magnificado novamente. Por esse motivo, é muito importante mostrar que existem outras representações – o que pode ser feito por meio da música.”
Como se faz um baião
Embora Gonzaga seja o responsável por sua construção como gênero comercial, o baião já existia. “Trata-se de uma música com uma diversidade muito grande de sonoridades, de instrumentos que eram utilizados nas festas, nas práticas religiosas e, eventualmente, nas feiras, em uma determinada região. Luiz Gonzaga pegou essa pluralidade de elementos musicais e valorizou, organizou, estilizou e padronizou, para dar-lhe uma cara compatível com o formato da canção de massa, dos meios de comunicação, principalmente do rádio”, explica Zan.
A chegada às rádios da canção “Baião” determinou o nascimento de um estilo estruturado, comercial, em 1946. Em 1949, o sanfoneiro lançou a segunda versão da canção, introduzindo a base instrumental definitiva do baião: zabumba, triângulo e sanfona.
“Hoje, basta ouvir os três instrumentos juntos, formação conhecida como pé de serra, para vir à mente a ideia de sertão.” A letra apresentou ao Brasil uma música alegre e festiva, para dançar. A melodia introduziu um elemento sonoro tradicional na música ancestral nordestina, lapidado para conquistar o mercado. Conhecido como modo mixolídio, o recurso se fundiu ao baião, conferindo-lhe uma espécie de assinatura. “[Esse estilo] é reconhecido mesmo quando tocado sem letra”, afirma o orientador. Com o passar do tempo, Gonzaga incorporou aos versos originais das canções narrativas que remetem à embolada e ao cordel.
Entre os recursos sonoros usados para produzir sentido, o pesquisador cita o uso de acordes tensionados, cuja presença potencializa a associação entre melodia e letra, podendo resultar na intensificação tanto da narratividade como da carga emotiva da canção.
É assim em “Asa Branca”, música sobre tristeza e saudade da terra; em “Paulo Afonso”, uma ode à modernização; e em “Vozes da Seca”, na qual o cantor chama os governantes à responsabilidade. Com o passar do tempo, Gonzaga acrescentou o resfolego, técnica de tocar o acordeão caracterizada por rápidos movimentos curtos. Assim como o ritmo sincopado, marcado pela batida da zabumba, a novidade passou a ser associada à ideia de festa e de sertão. “As linguagens sonoras tinham por objetivo reforçar a mensagem, que era sempre algo relativo ao Nordeste.”
Roupagens de um clássico
“Asa Branca” foi a obra escolhida para abordar especificamente a importância que a interpretação e o momento histórico da gravação desempenham na geração de significados. Granja trabalhou com a canção gravada por Gonzaga em 1952, a versão lançada por Geraldo Vandré em 1965 e a cantada por Caetano Veloso, de 1971. Encontrou três músicas completamente diferentes. Mais conhecida das três, a primeira transmite uma mensagem que combina a tristeza da letra com o vigor das sonoridades – e convida à dança.
Já Vandré lançou, um ano depois do golpe cívico-militar, uma versão que carrega, sublinha Zan, influências das diretrizes divulgadas pelo Centro Popular de Cultura (CPC) – importante órgão de resistência e orientação da classe artística no início da ditadura. “Ele recorreu à representação de povo brasileiro construída pelo CPC e fez uma interpretação efusiva. A canção se tornou um chamado à guerra.” Para tanto, além do modo enérgico de cantar, o intérprete incluiu uma banda com metais, incorporando modernidade ao clássico.
Com Caetano, a composição transformou-se em uma canção de exílio. Da Inglaterra, para onde partiu durante a ditadura, o músico potencializou a carga de tristeza de “Asa Branca” com sua forma de cantar. “Ele usou um recurso dos cantores cegos, populares no Nordeste, criando melismas, e alongou as vogais dos versos, além de derrubar o andamento da música pela metade”, descreve o orientador. Ao ouvir a canção pela primeira vez, conta Granja, o Rei do Baião foi tomado pela emoção, dizendo: “Quando ele [Caetano] começou a fazer a gemedeira do cantador nordestino – ‘Hummm hum hum hummm hummmm!’ –, aí eu chorei pro povo ver, ali na loja. Chorei mesmo, emocionado”.