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Consórcio põe doenças negligenciadas na agenda de pesquisas

Parceria entre Unicamp, USP e organizações do setor busca novos tratamentos para malária, leishmaniose visceral e doença de Chagas

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Pesquisadores em laboratório do Instituto de Química: meta é identificar candidatos clínicos para o desenvolvimento de novos fármacos

Parceria entre Unicamp, USP e organizações do setor busca novos tratamentos para malária, leishmaniose visceral e doença de Chagas

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, em 2022, cerca de 1,62 bilhão de pessoas em todo o mundo sofreram com os efeitos das chamadas doenças tropicais negligenciadas. Os dados são do Relatório Global de Doenças Tropicais Negligenciadas, publicado em maio de 2024. O número aponta uma redução de 26% no número de casos em relação a 2010, uma cifra, porém, ainda longe da meta de diminuir em 90% a incidência dessas doenças até 2030. A lista de doenças classificadas como negligenciadas varia conforme os critérios adotados e a situação epidemiológica das diferentes regiões do globo, mas elas têm em comum a característica de provocar, nas palavras da OMS, “ciclos geracionais de pobreza que custam bilhões de dólares por ano a países de baixa e média renda”. Entre as principais doenças, estão: a hanseníase, a dengue, a leishmaniose, a esquistossomose, a doença de Chagas, a úlcera de Buruli e a tripanossomíase africana (conhecida como doença do sono). 

A busca por soluções para esse problema global demanda uma articulação envolvendo especialistas de diferentes áreas com a capacidade de estabelecer intercâmbios entre centros de pesquisas químicas, médicas e biológicas, a indústria farmacêutica e organizações de apoio a populações afetadas pelas doenças. É com esse objetivo que, desde 2013, especialistas da Unicamp articulam parcerias com outras universidades e organizações e que, em 2020, firmaram o consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases – Mindi (Iniciativa de Moléculas para Doenças Negligenciadas). A parceria envolve a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP) e as organizações Drugs for Neglected Diseases initiative – DNDi (iniciativa para Medicamentos para Doenças Negligenciadas) e Medicines for Malaria Venture – MMV (Empreendimento para Medicamentos para Malária). 

Com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), o consórcio tem a meta de identificar candidatos clínicos para o desenvolvimento de novos fármacos contra a doença de Chagas, a leishmaniose visceral e a malária – esta, apesar de não mais enquadrada como doença negligenciada, ainda afeta populações vulneráveis, sobretudo na África.

Além do potencial de beneficiar milhões de pessoas que sofrem com essas doenças, a iniciativa também representa um avanço importante na área de descoberta de novos medicamentos dentro do Brasil. “Se conseguirmos chegar a um candidato clínico, será um caso inédito na América Latina”, observa Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp e coordenador do consórcio.

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O professor Luiz Carlos Dias, coordenador do consórcio: “Candidato clínico não pode apresentar nenhum tipo de toxicidade”

Medicamentos de baixo custo

O processo de desenvolvimento de um novo fármaco é longo e composto por diversas etapas. Tudo começa com a investigação do potencial de uma entidade química – uma molécula, uma substância ou um composto – de agir sobre as causas de uma doença, como matar uma bactéria ou um parasita ou inibir a replicação de um vírus.

Quando um composto do tipo é identificado, uma série de estudos e melhoramentos realizam-se a fim de que ele esteja pronto para ser testado primeiro em células, em experimentos in vitro, e depois em animais. Se os resultados da fase inicial, chamada pré-clínica, forem positivos, mostrando-se seguros e eficazes, o composto passa a ser considerado um candidato clínico e, então, pode ser usado em testes com seres humanos. 

O consórcio Mindi pretende chegar a candidatos clínicos para a doença de Chagas, a malária e a leishmaniose visceral. Atualmente, as pesquisas relacionadas ao tratamento da leishmaniose já estão em estágio avançado. “Por conta da priorização dos investimentos recentes, temos mais candidatos perto de entrarem no mercado nos próximos cinco anos”, destaca Luiza Cruz, coordenadora da área de descoberta de novos medicamentos na DNDi.

A pesquisadora explica que existem alguns compostos já em fase clínica, um deles elaborado em parceria com o laboratório Novartis. “A DNDi é uma organização que consolidou na parte clínica testes voltados às doenças negligenciadas, pois trabalhamos junto a comunidades de pacientes no Brasil, na África e na Ásia.”

Assim, os estudos em desenvolvimento pelo consórcio focam a descoberta de candidatos clínicos para o tratamento da doença de Chagas e da malária. A meta é desenvolver, para cada uma das doenças, medicamentos orais, sem problemas de toxicidade, de baixo custo, que sejam estáveis em condições climáticas tropicais – de alta temperatura e alta umidade – e que possam ser utilizados também por gestantes e crianças. No caso do trabalho com a MMV, o desafio consiste em chegar a um tratamento em dose única para a malária. “Por causa disso, o candidato clínico não pode apresentar nenhum tipo de toxicidade”, alerta Dias.

O coordenador do consórcio explica que a DNDi e a MMV possuem em seus portfólios estruturas químicas que sobraram de outras pesquisas e que podem apresentar propriedades úteis em tratamentos do tipo. “São moléculas que foram produzidas para outro objetivo, diferente do tratamento de doenças parasitárias tropicais, mas que, por alguma razão, não serviram.”

Essas moléculas são enviadas a laboratórios para que sua capacidade de inibir os parasitas passe por testes in vitro. Em caso positivo, chegam a outros laboratórios, como o IQ, a fim de serem preparadas em forma pura e isolada e, então, testadas novamente. Nesse fluxo de trabalho, avaliam-se vários compostos ativos contra parasitas para determinar sua eficácia, suas propriedades físico-químicas e seu grau de toxicidade. Pode haver modificações químicas de modo a aperfeiçoá-los, modificações essas seguidas de novos testes, em um ciclo que pode se repetir várias vezes. “É como se montássemos um Lego a partir de materiais de partida mais simples”, compara.

Se os resultados dessa segunda rodada in vitro mostrarem-se promissores, parte-se para estudos e avaliações em relação a sua toxicidade, metabolização, absorção e distribuição pelo organismo, entre outros fatores, tudo isso antes dos testes com animais. Ao fim desse longo processo, o composto é considerado um candidato clínico se apresentar resultados positivos nas fases pré-clínicas e puder ser usado em ensaios com seres humanos. “Esse é um desafio enorme”, sintetiza Dias. “É como uma corrida de obstáculos.”

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Luiza Cruz, coordenadora da área de descoberta de novos medicamentos: alguns compostos já estão em fase clínica

Os números justificam

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), mais de 6 milhões de pessoas no mundo são afetadas pela doença de Chagas, com 30 mil novos casos e 10 mil mortes por ano apenas na América Latina.

Causada pelo Trypanosoma cruzi, um protozoário encontrado nas fezes dos triatomíneos – insetos conhecidos como barbeiros –, a enfermidade tem uma taxa de detecção menor de 10%. Em sua fase aguda, o sujeito infectado apresenta sintomas, como febre e dores no corpo, que podem ser confundidos com os de outras doenças. Porém, na forma crônica, a infecção pode acarretar distúrbios cardíacos, algo que afeta até 30% dos pacientes. O Ministério da Saúde do Brasil estima que entre 1,9 milhão e 4,6 milhões de moradores do país estejam infectados pelo protozoário. 

“Nosso objetivo não é apenas garantir que a doença não mate as pessoas. As sequelas e o tratamento desabilitam os pacientes, causando outros problemas de saúde”, afirma Dias. Os dois medicamentos disponíveis para o tratamento, benznidazol e nifurtimox, foram desenvolvidos nos anos 1960 e 1970 e têm eficácia limitada, além de causarem efeitos colaterais indesejados, como enjoos e dores estomacais. “Aos primeiros sinais de melhora, as pessoas acabam abandonando o tratamento.” Atualmente, apenas o benznidazol é utilizado no país e é a opção para o tratamento de crianças. 

Malária

Já no caso da malária, o desafio é vencer a diversidade e a capacidade de adaptação do plasmódio, o protozoário causador da doença. Cinco espécies do parasita causam a malária: Plasmodium vivax, P. falciparum, P. malariae, P. ovale e P. knowlesi – os três primeiros ocorrem no Brasil, com predominância do P. vivax. A doença causada por ele é mais branda se comparada à malária decorrente do P. falciparum, predominante em países africanos. Dos 150 mil casos da doença no Brasil reportados em 2022, segundo o Relatório Mundial de Malária 2023 (World Malaria Report), elaborado pela OMS, houve apenas 50 mortes. A região amazônica concentra 99% dos casos autóctones do Brasil.  

Os pesquisadores desejam chegar a um tratamento que seja útil a pacientes afetados pela doença também nos países africanos. Dos 249 milhões de casos registrados no mundo pela OMS em 2022, 94% ocorreram na África, com cerca de 580 mil mortes, sendo que 78% delas atingiram crianças com menos de cinco anos.

Composição

Dias explica que as diferenças entre os plasmódios dificultam o desenvolvimento de fármacos. “A cloroquina, por exemplo, é usada para o tratamento no Brasil, mas na África a espécie P. falciparum já adquiriu resistência a ela.” O professor lembra que, em 2023, o país incorporou a tafenoquina, medicamento desenvolvido pela MMV em parceria com o laboratório GSK, ao Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, apesar da vantagem de ser ministrada em dose única, a tafenoquina não é adequada a pacientes com menos de dois anos de idade e nem à malária causada pelo P. falciparum.

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