Sistema mapeia formação de dunas
Pesquisas auxiliam desde o monitoramento de regiões arenosas até o estudo da superfície de Marte
Em julho de 2021, moradores do Bairro Ingleses, localizado na região norte de Florianópolis (SC), foram surpreendidos por uma intempérie incomum. As dunas, formadas em terrenos arenosos que circundam o local, avançaram sobre as residências, o que causou o desabamento parcial de um imóvel e a interdição de outros pela Defesa Civil. Notícias divulgadas na época apontam que as casas haviam sido construídas em uma área de proteção permanente e que, portanto, estavam em situação irregular. A ocorrência, de toda forma, mostrou que os movimentos das dunas não devem ser ignorados e que conhecê-los é um fator importante para o planejamento urbano em áreas litorâneas e de areia.
O comportamento de dunas compõe parte importante dos estudos desenvolvidos por Erick Franklin, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp. As pesquisas desenvolvidas por ele e por seus orientandos analisam desde os movimentos dos grãos de areia que compõem as dunas e a direção e a velocidade dos ventos e das águas — no caso de bancos de areia que se formam no leito dos rios ou no fundo do mar — até as interações que podem ocorrer entre diferentes dunas quando se movimentam.
A novidade desses estudos consiste no desenvolvimento de um sistema de inteligência artificial, em modelo de rede neural, capaz de detectar dunas, classificá-las, medir suas propriedades e segui-las de forma automática por meio de imagens de satélite. O trabalho saiu publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, em um artigo assinado por Franklin e por Esteban Cúñez, mestre em engenharia mecânica orientado pelo docente. A tecnologia abre caminhos para o mapeamento e monitoramento do avanço ou recuo de áreas dominadas por dunas, entre as quais porções da superfície de Marte, planeta coberto por áreas rochosas e arenosas.
Olhando de cima
As dunas não são apenas montes de areia que surgem de forma aleatória. Há muita ciência envolvida em sua existência e cabe à mecânica dos fluidos explicar sua formação e seus movimentos. “Quando temos um depósito de material particulado imerso em um fluido em escoamento, podemos ter a formação de dunas”, sintetiza Franklin. O que varia são o material particulado que forma as dunas, em geral a areia, e o tipo de fluido que carrega esse material, o ar ou a água. “A relação entre a velocidade e a densidade dos fluidos e o material particulado é o que vai formar as dunas de tamanhos e formas diferentes”, explica.
Franklin dedica-se ao estudo das dunas chamadas barcanas, com formato de lua crescente, ou de croissant. A principal condição para que se formem é o escoamento unidirecional do fluido. Ou seja, quando o vento sopra em uma única direção sobre um banco de areia, ou quando a água corre sobre o leito particulado de um rio, há a formação de barcanas, e as pontas da meia-lua apontam para a direção que o fluido escoa.
Na Terra, essas formações costumam ter entre 100 metros e 500 metros de comprimento, com altura equivalente a 10% desse valor. Já em Marte, podem chegar a 1 quilômetro de extensão. O tempo também varia: as dunas eólicas terrestres demoram anos ou décadas para ter seus movimentos detectados. Em Marte, esse intervalo de tempo aumenta para a casa dos milênios. De acordo com o docente, isso ocorre por causa da densidade da atmosfera marciana, cerca de cem vezes menor que a terrestre, o que implica uma capacidade menor de carregar os grãos.
A fim de poderem estudar o comportamento das dunas eólicas sem ter que aguardar o tempo natural de suas alterações, os pesquisadores reproduziram a formação delas na água – meio com uma densidade de 800 a 1.000 vezes maior que a do ar –, reduzindo o tempo de formação das dunas para minutos. O experimento consiste na construção de um canal de acrílico, onde são depositados pequenos montes de microesferas de vidro. À medida que a água corre, consegue-se observar a formação das barcanas e as diferentes maneiras como interagem entre si. As observações sobre as pequenas dunas formadas na água permitem aos pesquisadores inferir a respeito do comportamento delas quando em um meio eólico.
A ideia de incorporar a inteligência artificial à análise das dunas surgiu com o desejo de mapear grandes áreas, desde desertos até a superfície de Marte. O treino da rede neural teve início com as imagens obtidas nos experimentos em água. Em um segundo momento, a rede recebia outras imagens, ainda dos experimentos em água. Como resultado, a rede passou a conseguir identificar e delimitar as barcanas. O terceiro passo consistiu em mostrar à rede imagens de satélite de áreas com barcanas eólicas, na Terra e em Marte.
“A rede nunca tinha visto as imagens e percebemos que sua capacidade de identificação era robusta”, observa Franklin. O resultado: uma acurácia estimada de 70% a 90% na identificação, classificação e delimitação de dunas barcanas. “O sistema conseguiu identificar as dunas tanto em imagens com resolução diferente, com pouco contraste entre as dunas e o solo, quanto em contextos diversos, como quando as dunas estão se fundindo ou se dividindo.”
Mais do que areia
Os pesquisadores pretendem, como próximo passo, dotar a rede neural da capacidade de predizer o comportamento das dunas a partir de sua posição em um determinado momento e dos aspectos do fluido envolvido – densidade, velocidade, direção. Nesse caso, os resultados dos experimentos com água serão fundamentais, já que, em meio eólico, as dunas demoram muito tempo para sofrer deformações.
Além de ser um recurso importante para monitorar áreas de dunas, seja para evitar que elas invadam residências, como em Florianópolis, seja para preservar ecossistemas como o dos Lençóis Maranhenses, pesquisar o comportamento de dunas do tipo barcana permite conhecer aspectos do ambiente onde se formam, mesmo que ambientes, ao menos por enquanto, fora de alcance para a humanidade. As dunas de Marte, por exemplo, indicam aspectos da atmosfera do planeta. “Basta olhar para um campo de barcanas em Marte para sabermos a direção e intensidade dos ventos que sopram por lá”, afirma.