Quem caminha pelo campus da Unicamp em Campinas depara-se com sibipirunas, ingás, mirindibas, amburanas, paus-ferro e muitas outras espécies dentre as 14 mil árvores plantadas nas áreas comuns. Uma série de motivos, como risco de queda por rachaduras, proximidade de tubulações e problemas estruturais ou de infestações de agentes xilófagos, faz com que cerca de cem delas sejam cortadas anualmente – e 30% dessas árvores são nativas e não podem deixar o local de acordo com o código florestal e, até agora, ficavam sem uma destinação definida. Um novo projeto, proveniente de uma parceria da Divisão de Meio Ambiente (DMA) com a Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), está utilizando a madeira para o desenvolvimento científico e posterior produção de mobiliário e outros itens que servirão às entidades assistenciais na Universidade.
A iniciativa – com financiamento do Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Faepex) por meio do Programa de Incentivo a Novos Docentes (Pind) – aposta em conceitos modernos ligados à economia circular da madeira, reaproveitamento de materiais e pegada de carbono. A professora e coordenadora do projeto, Cinthya Bertoldo, estuda madeiras há mais de 15 anos e conta que os troncos de árvores nativas derrubadas ficam acomodadas em um espaço da antiga Fazenda Argentina. “Muitas espécies produzem madeira de qualidade e podem ter um destino mais nobre”, afirmou. Além de evitar o desperdício desse material, a iniciativa também impede que o carbono sequestrado pela árvore durante seu crescimento seja devolvido ao meio ambiente durante o processo de decomposição do material orgânico.
A proposta é, portanto, estudar as propriedades mecânicas de cada árvore e, a partir disso, propor a confecção de móveis e outros artefatos, processo esse sob responsabilidade do técnico em mecânica geral do Laboratório de Protótipos da Feagri José Maria da Silva – especializado em gestão ambiental e sistema de gestão integrada (SGI). Silva já trabalha com paletes, sendo também responsável por um projeto, premiado na Unicamp, de reaproveitamento de copos descartáveis.
O primeiro item produzido, um banco projetado pelos arquitetos Orpheu e Cléia Thomazini, será exposto na Expoflora 2024 em Holambra (SP). “Trata-se de uma oportunidade de divulgarmos o projeto em um espaço maior. Nossa proposta se preocupa com o reaproveitamento econômico da matéria-prima usada para o desenvolvimento científico e que, agora, será útil também para todos que convivem dentro do campus – permitindo a acomodação das pessoas de modo mais sustentável”, diz Silva. Os produtos finais serão instalados em locais como creche, escola e hospital na Unicamp.
Economia circular
O primeiro passo começa com o monitoramento da árvore ainda de pé, um processo que, em alguns casos, conta com o auxílio da Feagri para determinar o risco de queda por meio de tomografia ultrassônica e outras técnicas não destrutivas como resistência a perfuração – cujos dados também são aproveitados em outro projeto de pesquisa da faculdade, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), relacionado à biomecânica das árvores.
Quando o corte ou a poda mostram-se necessários, os troncos são enviados para o laboratório, onde ocorre a identificação da espécie e a catalogação do material. Depois, a madeira segue para o desdobro em pranchas em uma serraria, retornando aos laboratórios da Feagri para análise. “Temos rastreabilidade desde o início do processo, então sabemos em que local a árvore estava plantada, qual a sua espécie etc.”, informa Bertoldo. Isso permite, por exemplo, saber exatamente quais espécies foram usadas para a produção de determinado móvel.
O estudo das propriedades da madeira, por meio de ensaios destrutivos e não destrutivos, revela-se essencial para entender seus possíveis usos. Os primeiros visam determinar a resistência do material. Nesse caso, um pequeno corpo de prova da espécie nativa em estudo passa por ensaio de compressão em uma máquina até romper, a fim de medir a carga máxima suportada. Já para os ensaios não destrutivos, é necessária a confecção de um pequeno corpo de prova no formato poliédrico, que passará por ensaio de ultrassom. Isso porque a madeira é um material ortotrópico, ou seja, tem propriedades distintas nos três principais eixos de simetria (longitudinal, radial e tangencial).
Bertoldo esclarece que a análise segue o mesmo princípio do ultrassom médico: “Utilizamos gel medicinal para acoplar o transdutor ao poliedro. Usamos dois transdutores, um que emite e outro que recebe o pulso da onda. Analisamos o sinal e capturamos o tempo de propagação da onda. Assim, conseguimos calcular as velocidades, os coeficientes de rigidez e a matriz de flexibilidade, o que permite obter os doze parâmetros elásticos envolvidos na caracterização da madeira”. Esse poliedro, que antes era artesanalmente fabricado por Silva, hoje é obtido por meio de um processo automatizado, em uma máquina de controle numérico disponível no Espaço Plasma, ambiente multifuncional na Unicamp. “José Maria da Silva continua produzindo o cilindro, que é transformado em poliedro no Espaço Plasma. Já temos todo o script para o produção, damos um start na máquina e em duas horas está pronto”, acrescenta a professora.
Silva destaca que o objetivo desse esforço é aproveitar a madeira “até o último grão”, uma vez que a serragem também será usada, como matéria-prima para a produção de “madeira plástica”, misturando os resíduos gerados pela usinagem da madeira com plástico proveniente de embalagens e copos descartáveis. A confecção desse material composto ocorrerá por meio do processo de extrusão de moldagem de materiais, em uma máquina construída por Silva. O material ainda é pouco conhecido e será submetido aos mesmos exames destrutivos e não destrutivos para definição da composição ideal e possíveis aplicações. “Vamos estruturar as proporções [das matérias-primas] que tragam as melhores propriedades mecânicas para o material. As possibilidades [de uso] vão depender das propriedades mecânicas da madeira plástica”, conta Bertoldo.
O projeto, iniciado há cerca de um ano, pretende unir pesquisa, ensino e extensão. Atualmente, ele engloba o Laboratório de Materiais e Estruturas (LME), o Laboratório de Ensaios Não Destrutivos (Labend) e o Laboratório de Protótipos. Com o financiamento, foram adquiridas novas máquinas (serra fita, desengrossadeira e serra de bancada). E a ideia agora é incluir os alunos também na montagem dos móveis, em partes do processo que não envolvam riscos à segurança. Para Bertoldo, esse projeto tem potencial “para fazer parte da curricularização da extensão”, que determina que “a graduação precisa ter 10% das disciplinas fazendo parte da extensão”. Bolsista do laboratório, a aluna do décimo período de graduação Luana da Silva Isidorio envolveu-se recentemente no projeto e interessa-se especialmente pelas questões de sustentabilidade. “Trata-se de uma oportunidade de termos muito contato com a pesquisa ainda na graduação e com colegas mestrandos e doutorandos”, ressalta.