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Do relatório como objeto literário

"Os textos oferecem, assim, um conjunto estilístico e moral coerente e envolvente, tanto mais porque pontuados por comentários mordazes"

Eis que finalmente aparecem em livro os famosos relatórios enviados pelo prefeito de Palmeira dos Índios ao governador de Alagoas, no final dos anos 1920. Um editor pressentiu ali uma vocação literária e em 1933 era publicado Caetés, o primeiro romance de Graciliano Ramos. Os relatórios em questão continuam sendo modelos de uma escrita sóbria e eficaz, adequada ao administrador zeloso que enfrentou desafios com energia e prestou conta dos resultados com objetividade. À época, tiveram enorme repercussão. Como declarou o autor, isso ocorreu “porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes”. Os textos oferecem, assim, um conjunto estilístico e moral coerente e envolvente, tanto mais porque pontuados por comentários mordazes.

O escritor Graciliano Ramos (Foto: Reprodução acervo site do escritor)
O escritor Graciliano Ramos (Foto: Reprodução acervo site do escritor)

A administração padecia da falta de controle. “Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. (…) Pagamos até a luz que a Lua nos dá”, registra ele sobre o serviço de iluminação herdado do antecessor. Os recursos são exíguos. Obras são adiadas, como a construção do novo cemitério. “Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam”. Ao renunciar, Graciliano deixou projetos concluídos e contas saneadas. Sua maior contribuição, no entanto, foi esboçar uma escrita caracterizada pelo rigor da expressão, embora não desprovida de graça e personalidade. Foi a gênese do escritor admirável que depois conheceremos.

O autor admitia haver traços de si em seus principais personagens. Como aponta Paulo Rónai, é notável a importância que adquire, para cada um deles, o problema da expressão. O estilo seco, incisivo, que os caracteriza seria o avesso de uma “língua convencional e vazia”, que “quer impor-se às pessoas vivas, forçando-as a separar-se da realidade”. Estilo compatível com a apreensão da verità effettuale della cosa, para usar uma expressão de Maquiavel, e palpável na caracterização do Paulo Honório de S. Bernardo. “Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las.” Dir-se-ia um César Bórgia que se expressasse como o escritor florentino: “Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favorável nas seguintes.”

Falando em Maquiavel, sua excelente educação literária lhe valeu um cargo na chancelaria de Florença, onde redige inúmeros relatórios e despachos. Também cuida das atas das assembleias de cidadãos consultados quando a República enfrentava crises. Seus participantes, diz Skinner, se exprimiam “em termos tão corrosivos e mordazes quanto as mais rigorosas formulações do próprio Maquiavel”. Ele irá transpor, para seu pensamento político, aquele tipo de sabedoria prática vazada em linguagem direta. Secretário de embaixadores em várias missões, dá-se conta, na corte francesa, da situação precária da sua cidade, ignorada pelos seus senhores. “A dolorosa verdade é que eles vos chamam de Senhores Nada”. Observando de perto as ações de César Bórgia, aprende sobre a arte de surpreender e sobre o uso calculado da violência política. Suas anotações, feitas no calor da hora e enviadas em segredo a seus superiores, tornaram-se célebres ao aparecerem literalmente no capítulo sete do Príncipe.

Nietzsche soube intuir o ágil andamento musical da língua de Maquiavel, “que no seu Príncipe nos faz respirar o ar fino e seco de Florença”. Nosso secretário “consegue expor o assunto mais sério num indomável allegrissimo”, revelando assim “uma maliciosa percepção artística do contraste” – de um lado, “pensamentos difíceis, prolongados, duros, perigosos”, de outro, “um tempo de galope e do bom humor mais caprichoso”. Falando em Nietzsche, esse bom humor nos assuntos sérios nos remete ao filósofo ainda  adolescente, que, como o primeiro de sua classe, redige aos professores do Liceu de Pforta relatórios um tanto jocosos: “No auditório tal, as lamparinas reluzem tão palidamente que os alunos são tentados a fazer brilhar a própria luz”. Ou ainda: “no 7°ano, os bancos acabaram de ser pintados e mostram um indesejável apego a seus donos”. A reação não foi das melhores: “Os severos senhores professores ficaram muito espantados com a mistura de gracejos em uma coisa tão séria e infligiram-me nada menos que três horas de calabouço e a suspensão de alguns passeios”. 

Moral da história: não há moral, trata-se apenas de uma rapsódia sobre a escrita formal, sugerindo que a prosa útil não precisa ser desagradável, e mais: que o trabalho prático pode ser uma propedêutica para a arte e para a compreensão da realidade. “Para ser um bom filósofo é preciso ser seco, claro, sem ilusão. Um banqueiro que faz fortuna tem parte do caráter necessário para fazer descobertas em filosofia, ou seja, para ver claro naquilo que é.” (Stendhal, apud Nietzsche, Além do Bem e do Mal).

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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