Obra compila verbetes escritos por especialistas em História, Antropologia e Literatura
O Breve dicionário das literaturas africanas, organizado por Fernanda Gallo, tem como objetivo suprir a urgência de estudos referenciais sobre a vasta autoria africana, seus principais eixos temáticos e as especificidades de sua diversa produção literária. Membro do Kaliban — Centro de Pesquisa em Estudos Pós-Coloniais e Literatura Mundial, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp —, Gallo respondeu a perguntas sobre o trabalho teórico e sobre os pesquisadores envolvidos na elaboração do dicionário, publicado em 2022 pela Editora da Unicamp, além de explicitar a importância de estudar e discutir o continente africano não somente no âmbito acadêmico, mas em outros espaços da sociedade.
Segundo a autora, podemos observar que o mercado editorial brasileiro vem publicando cada vez mais obras literárias de autoria africana, provenientes de países diversos, e a ampliação dessa geografia é fundamental para compreendermos a complexidade do continente, para além das relações históricas estabelecidas com o Brasil.
Jornal da Unicamp – Na sua opinião, como essa obra contribui para a recepção nacional das literaturas africanas?
Fernanda Gallo – O dicionário busca oferecer outros enfoques, conforme sugerido no verbete “Estudos do Oceano Índico”, em que Gabriela Beduschi situa o modo como as obras literárias que tematizam o Índico desafiam pensamentos nacionalistas, reformulam as fronteiras artificialmente impostas e registram imaginários construídos a partir desse “arquivo líquido”. Os verbetes procuram diluir concepções binárias, situando os debates de temas importantes, como a questão da língua, problematizada no verbete “Língua oficial, línguas nacionais”, de Raquel Gomes, ou ainda de opções teóricas, no verbete “Pós-colonial/Decolonial”, de Elena Brugioni, que traça os pontos de contato e de distanciamento entre os dois conceitos.
JU – A obra reúne 19 textos sobre termos literários produzidos no continente africano. Quais desses a senhora destacaria e por quê?
Fernanda Gallo – Eu gostaria de destacar dois verbetes que, além de dialogarem entre si, do meu ponto de vista, contribuem para uma visão não essencialista do continente africano. No verbete “Escrita”, José Rivair Macedo situa historicamente a existência de formas escritas e/ou meios de comunicação não verbais, passando pelo desenvolvimento da escrita alfabética e seguindo pelos meios de difusão da escrita alfabética europeia entre as elites locais (fins do século XV), a gramatização de línguas locais para evangelização (fins do século XIX), o surgimento da imprensa e a circulação de textos diversos. Nessa direção, “Islã, islamização”, verbete de Thiago Henrique Mota, explora de modo mais específico a circulação de textos em árabe, diferenciando os processos que envolvem religião islâmica, cultura árabe e línguas africanas escritas no alfabeto árabe.
JU – No livro, alguns verbetes ganharam novos significados, como “tradição”, “animismo” e “oralidade”. Qual a importância dessa nova conceituação para o estudo atual das literaturas africanas?
Fernanda Gallo – Tais conceitos são constantemente atribuídos ao continente africano como se fossem um dado “natural”, o que, por vezes, acaba contribuindo para uma visão exotizada da “África” (no singular). Rejane Vecchia e José Welton chamam a atenção para o modo pelo qual, em muitos casos, “a oralidade torna-se um instrumento de reconhecimento nostálgico de uma africanidade compartilhada, entendida como aspecto essencial de todas as sociedades africanas e, por isso mesmo, apta a ser identificada como elemento fundamental de todo e qualquer texto das literaturas africanas”.
Interpretações desse tipo acabam por desconsiderar tanto as estratégias utilizadas pelos escritores na mediação entre a oralidade e a escrita como a dinâmica da tradição que, conforme demonstrou Lorenzo Macagno, é constantemente criada e recriada. No fundo, trata-se de três conceitos amplamente utilizados pela administração colonial para categorizar (e desconsiderar) “o outro” e que continuam a ser mobilizados sem uma necessária contextualização.
JU – Em 2023, a lei que obriga a adoção do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos conteúdos programáticos das instituições de ensino brasileiras completa 20 anos. A senhora destaca que o livro também pode ser usado por professores de ensino fundamental e médio. Quais são as suas expectativas sobre o uso pedagógico dessa obra?
Fernanda Gallo – A lei é uma importante conquista. Creio que o dicionário seja uma “breve” contribuição, já que oferece aos professores ferramentas analíticas sobre a escrita de autoria africana. O conjunto de verbetes que trata da história literária, por exemplo, será útil para uma reflexão interdisciplinar sobre os efeitos da colonização e sobre o papel da literatura na reinvindicação à autodeterminação nacional.
Já os verbetes que elaboram um diálogo entre a literatura e outras artes, a exemplo do cinema, são interessantes para aproximar o jovem de várias realidades africanas e variadas formas de representação e imaginação, como no caso do afrofuturismo. Além disso, o dicionário apresenta diferentes autores e obras que constam no índice remissivo, oferecendo, ao final de cada verbete, sugestões bibliográficas para aprofundar os temas tratados.
Título: Breve dicionário das literaturas africanas
Organizadora: Fernanda Gallo
Páginas: 288
Formato: 6cm x 18cm
Editora da Unicamp