Técnica desenvolvida no Laboratório de Computação de Imagens Médicas permite quantificar o grau de acometimento da doença
O Laboratório de Computação de Imagens Médicas (MICLab – Medical Imaging Computing Lab) da Unicamp chega aos 15 anos de existência em 2023 não apenas mantendo as frentes originais de investigação sobre o cérebro, como também atuando no desenvolvimento de métodos e algoritmos para a análise de dados e imagens que contribuem em tratamentos de doenças decorrentes da covid-19 e de moléstias da pele.
“Começamos muito focados em doenças do cérebro, mas, em razão da covid, compreendemos que deveríamos estender um pouco o nosso olhar para fora do cérebro. Passamos, assim, a trabalhar em imagem do tórax e de outras estruturas e até de outras modalidades”, explica a coordenadora do laboratório, Leticia Rittner, professora do Departamento de Engenharia de Computação e Automação da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp.
A mudança de eixo nas pesquisas, segundo ela, tem a ver com o grau de maturidade do laboratório. “Quando você está começando, precisa focar para aprender e criar colaborações duradouras com os especialistas. A partir de um nível de maturidade maior, a gente pode ousar, ampliar nosso escopo”, argumenta.
Foi nesse contexto que os pesquisadores do MICLab iniciaram uma investigação relacionada à pandemia. “A gente estava vendo hospitais lotados, pessoas em busca de confirmação da infecção e um número insuficiente de testes. Foi, então, que o laboratório participou de um desafio do governo do Estado [Ideia Gov] para encontrar um método rápido, baseado em inteligência artificial, que identificasse pessoas infectadas pelo vírus”, conta.
Rittner recorda que a ideia era aplicar o método em pacientes que estivessem na fila de espera, aguardando o resultado do teste laboratorial. Uma ferramenta que dissesse, em segundos, por meio de raio X e tomografia computadorizada, se a pessoa estava infectada ou não. O grupo passou, então, a desenvolver técnicas de identificação de pulmões acometidos por covid. Conversando com médicos, os pesquisadores perceberam que o mais importante, naquela circunstância, era buscar uma forma de quantificar o grau de acometimento – uma informação fundamental para decidir, por exemplo, quem deveria ter prioridade na fila de internação.
“Houve casos de pacientes infectados pelo vírus e mandados para casa que morriam em seguida. Ou seja, não deveriam ter tido alta”, explica a professora. “Mais do que dizer se o paciente tinha ou não covid, os médicos queriam caracterização e quantificação”, explicou. Foi nesse ponto que começou o trabalho do pesquisador Diedre Carmo. Orientado pela professora Rittner e pelo professor Roberto de Alencar Lotufo, ele passou a segmentar o pulmão, ou seja, a isolar a estrutura do restante do organismo.
Na segmentação automática, o algoritmo desenha toda a borda do órgão, faz uma espécie de segregação para que se possa retirar dali uma série de medidas quantitativas. “A segmentação do pulmão é fácil para o caso de uma pessoa saudável, mas fica muito complicada em pacientes com uma patologia”, explica Carmo. Ele diz que, neste último caso, as bordas ficam borradas e, por isso, a segmentação é imprecisa. “E os sinais de consolidação da covid se dão justamente nas bordas”, observa.
A partir do trabalho de segmentação do pulmão, foi preciso também segmentar os achados – processo de identificação de toda a região que apresenta a patologia e, a partir desses dados, definir localização, volume e a porcentagem do órgão tomado pela patologia. E isso precisava ser feito em cada um dos pulmões. Essa avaliação tornou-se importante para definir não apenas a abordagem inicial mas também o rumo do tratamento, já que o médico podia comparar o estado do órgão entre um exame e outro. Antes, esse procedimento era feito apenas com base em estimativas.
Hoje, o modelo pensado por Carmo consegue segmentar tanto o pulmão, ainda que o órgão apresente patologias severas, como todos os achados registrados em regiões não saudáveis, incluindo também as vias aéreas. Segundo o pesquisador, o método foi aplicado em 350 pacientes e conseguiu estabelecer uma relação entre a vacinação e o grau de severidade dos danos no pulmão.
“Trata-se de um achado médico importantíssimo porque essa foi a primeira evidência de que a vacinação, mesmo na pós-infecção, diminui as sequelas pós-covid. E é uma evidência quantificável que só foi possível porque a ferramenta é extremamente detalhista”, diz a professora. Ela lembra que o modelo foi usado em um estudo de caso real e está disponível, online, para qualquer pesquisador do mundo. Entre maio e junho, Carmo deve apresentar o estudo em um congresso da American Thoracic Society (Sociedade Torácica Americana, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.
Assinatura espectral
O MICLab também está trabalhando na construção de um dispositivo capaz de produzir imagens multiespectrais a ser usado na análise de lesões de pele – casos de um melanoma (câncer de pele) ou lesões decorrentes de lúpus, por exemplo. Rittner informa que hoje a análise de lesões de pele é feita de maneira subjetiva. Estudos mostraram que as imagens multiespectrais, que têm mais bandas que o RGB – o padrão de cores usado na formação de imagens –, permitem uma análise mais precisa dessas lesões.
A professora diz que, numa lesão por lúpus, é muito importante avaliar a quantidade de tecidos já comprometidos, o grau do dano nas regiões de inflamação e se essa lesão pode ou não regredir. Hoje, isso tudo é feito por meio de uma grande tabela e uma avaliação visual. A ideia dos pesquisadores é permitir uma análise mais acurada, sem elementos subjetivos.
Rittner complementa e explica que o dispositivo será de baixo custo e poderá ser disponibilizado para uso extensivo no SUS (Sistema Único de Saúde). Hoje, os aparelhos que fazem esse tipo de leitura custam entre US$ 30 mil e US$ 50 mil, diz ela. O aparelho em desenvolvimento na Unicamp, cujo protótipo custou R$ 400,00, é formado por dois microcontroladores – um com uma câmera minúscula adaptada e outro que controla os LEDs. Um conjunto de LEDs emite luz em diferentes frequências – azul, laranja etc. No total, são seis bandas.
A pessoa repousa a mão num suporte e o mecanismo tira fotos em sequência para cada LED até obter um número determinado de fotos, em frequências diferentes. A maneira como o sinal varia em cada banda é chamada pelos técnicos de assinatura espectral. A região inflamada tem certas características em sua assinatura espectral, enquanto a região saudável tem outra. A partir desses dados, é possível segmentar, quantificar e diferenciar os tecidos. O uso do dispositivo ao longo do tratamento permitirá acompanhar a evolução da doença.
A fase II do projeto começou em novembro passado. O protótipo está em fase de construção e a sua programação está sendo finalizada. Os experimentos começam ainda no primeiro semestre, segundo Rittner.
A expectativa da especialista é que, no segundo semestre deste ano, haja uma rodada de testes clínicos. E a previsão é que, até o final do ano – no máximo no início do ano que vem –, o dispositivo passe a ser usado efetivamente no hospital.
Entender o hipotálamo
Apesar da ampliação do escopo da atuação do MICLab, seus pesquisadores ainda mantêm as linhas de pesquisa relacionadas com o funcionamento do cérebro. Em uma delas, procuram entender o funcionamento do hipotálamo – uma região do cérebro, de 4 centímetros cúbicos, localizada na base do encéfalo e muito difícil de ser visualizada nos exames de ressonância.
Os médicos sabem que o hipotálamo regula funções como o sono, a temperatura do corpo e o apetite, além de ter um papel no desenvolvimento de doenças raras como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Ademais, em vista da sua função na regulação do apetite, o hipotálamo é descrito na literatura médica como uma possível estrutura envolvida no processo da obesidade.
Uma das principais demandas dos médicos é saber o que acontece com o hipotálamo durante o desenvolvimento de uma doença ou um distúrbio. Querem saber, por exemplo, o que ocorre com a região durante o processo de ganho de peso de uma pessoa, se eventualmente sofre processos de hiperatividade ou deterioração, se perde ou mantém as características iniciais e de que forma isso se dá.
A tarefa dos pesquisadores do MICLab é justamente a de responder a essas questões. Para isso, começaram a desenvolver métodos de inteligência artificial que captam a imagem e, automaticamente, localizam o hipotálamo para dar início ao processo de segmentação. Os algoritmos desenham a borda da estrutura e retiram dali uma série de medidas quantitativas. Com ajuda da inteligência artificial, medem diâmetro, tamanho, volume, forma e, no caso específico do hipotálamo, a textura.
A professora conta que, no momento, o passo a passo para se chegar à segmentação é feito manualmente. Estudos mostram que a realização desse trabalho dura até quatro horas por paciente. “A nossa ferramenta faz isso em menos de um segundo”, diz. “Quando estou falando em dez pacientes, estou falando em 40 horas de trabalho. Os estudos, hoje, contam com mil, 1.200, 1.600 pacientes. Isso significa que, em segundos, eu tenho um banco de mais de mil imagens, totalmente segmentadas”, acrescenta.
A professora explica já haver grupos que estudam a segmentação do cérebro e que usam dispositivos capazes de realizar esse trabalho. Entretanto, explica que, em 10% dos casos, a segmentação da estrutura de interesse não fica boa. “Nós percebemos que, se alguém quisesse uma boa segmentação do hipotálamo, teria de criar uma ferramenta específica. E, no caso do hipotálamo, desenvolvemos a primeira do mundo”, afirma.
Pesquisadora do MICLab, Livia Maria Rodrigues foi a primeira a criar um dispositivo que segmenta o hipotálamo de forma totalmente automática. Um ano depois, um grupo de pesquisa do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, na sigla em inglês) também disponibilizou e publicou uma ferramenta de segmentação do hipotálamo. A partir da troca de informações, as duas instituições decidiram juntar forças. Rodrigues está em Boston (EUA) desde dezembro e deve voltar ao Brasil até julho deste ano. “Essa é a pesquisa mais importante em segmentação de hipotálamo no Brasil.”
Rittner analisa o impacto da pesquisa envolvendo o hipotálamo em diferentes patologias. “A obesidade é um problema de saúde pública e a Unicamp tem vários grupos que trabalham com esse tema. Além disso, acho que a pesquisa poderá ajudar muito no entendimento da ELA e de outras doenças debilitantes que geram perda muscular”, avalia.
A professora lembra que, por ter uma função reguladora importante, é possível que o hipotálamo esteja envolvido com outras enfermidades, mas que ainda se desconhece quais sejam elas por não existir uma ferramenta capaz de estudar a sua estrutura. Rittner exemplifica lembrando que, entre as pessoas acometidas por lúpus, há um grande número de obesos e que não se sabe muito bem o porquê disso. “O estudo, no caso do lúpus, vai ser exploratório. Se eu tiver a ferramenta e puder segmentar, será que vou achar uma relação?”, questiona.
“Eu vejo que essa ferramenta vai permitir a abertura de novas frentes de pesquisa e a descoberta da relação do hipotálamo com doenças que a gente ainda nem sabe que existem”, finaliza a pesquisadora.