Pesquisa explora espaços na cidade e novas formas de percebê-los com grupo de artistas e pessoas comuns
No projeto Corpo e Paisagem, a dança serve de instrumento para que um grupo composto não apenas por artistas, mas principalmente por pessoas comuns, explore diferentes possibilidades de estar, habitar e se movimentar na cidade. Idealizado pela artista da dança Laila Padovan em sua pesquisa de doutorado, no programa de pós-graduação em Artes da Cena da Unicamp, o projeto resultou na tese “Floresta nas Ruínas da Cidade – Fabular danças entre plantas, corpos e espaços”, defendida no Instituto de Artes (IA) da Universidade.
“A ideia surgiu do desejo de subverter os padrões estabelecidos e perpetuados pelo capitalismo, o colonialismo e o patriarcalismo, que condicionam e mecanizam nossos movimentos e nossas relações”, afirma Padovan. Para tanto, a artista elegeu como ferramenta a dança contextual, uma manifestação artística caracterizada por ser construída e apresentada fora dos espaços convencionais de exibição e por ser resultado das relações estabelecidas entre o performer e seu entorno.
Orientadora do doutorado e professora do IA, Ana Terra acredita que a pesquisa, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), contribui para uma reflexão sobre o futuro do ensino da dança, ao mesmo tempo que extrapola seus limites. “É um trabalho que atrai e congrega públicos diversos, artísticos ou não, acadêmicos ou não. Tem essa potência dentro da universidade que a gente pretende ser”, observa.
Criação coletiva
Corpo e Paisagem culminou na criação coletiva de quatro performances itinerantes, desenvolvidas e encenadas em 2019, em diversos espaços do Centro Cultural São Paulo (CCSP), na capital paulista. A pesquisadora convocou participantes no próprio espaço, pessoas com ou sem experiência profissional em dança, que se candidataram e fizeram parte da empreitada, divididos em quatro grupos de 20 integrantes. Durante um mês e meio, cada grupo recebeu orientações específicas de Padovan. A proposta era explorar os espaços e experimentar novas formas de percebê-los, seja por meio dos sentidos (ou da inibição de algum deles), seja por meio dos movimentos.
O primeiro grupo construiu sua performance após a experiência de “caminhar à deriva pelos meandros do Centro Cultural, percebendo que esse ato de andar sem rumo se difere do andar produtivo do dia a dia”, detalha a artista. Para o segundo grupo, a proposta foi suprimir a visão para explorar o espaço usando o tato, o olfato e a audição, reconhecendo texturas, formas e o encaixe do corpo na arquitetura. Já os integrantes do terceiro grupo partiram da temporalidade como tema. “Procuramos sentir os fluxos e os movimentos desses espaços, para depois nos fundirmos a eles. Às vezes desaparecendo, às vezes causando perturbações temporais nessas dinâmicas”, descreve Padovan.
Da investigação do terceiro grupo surgiu, por exemplo, uma performance em que os participantes se misturavam às pessoas sentadas no café do CCSP para mimetizar gestos produzidos repetidamente por quem frequenta o local, ora em uníssono, ora em um ritmo mais lento. “Existe uma coreografia, que a gente não percebe, nesse lugar. As pessoas chegam, pegam a bandeja, a bebida, o alimento e se sentam. Comem, bebem e depois se levantam, indo embora. Quando a gente brinca com o ritmo desses gestos, uma pequena, porém grande, perturbação acaba ocorrendo no espaço”, comenta a pesquisadora.
Finalmente, o quarto grupo trabalhou com questões como encontro e coletividade, concentrando-se na sua relação com os frequentadores do CCSP. Em uma das atividades propostas por Padovan, os participantes foram incentivados a, de olhos vendados, travar conversas com desconhecidos que encontrassem no espaço. “A percepção centrada no olhar carrega muitos preconceitos, sobre raça, gênero, etnia, classe social, aparência. Então, a gente tentou trazer uma conversa sem esses elementos, mas na qual havia a sonoridade e o ritmo da voz, cheiros, a sensação de estar mais perto ou mais longe do outro”, explica.
Encerrado o projeto Corpo e Paisagem, Padovan se preparava para analisar o material produzido quando a pandemia do coronavírus chegou ao Brasil. Se, por um lado, dar prosseguimento à pesquisa prática se tornou algo inviável, a pesquisadora enxergou na situação uma oportunidade para aprofundar sua investigação. Dessa inquietação, nasceu um projeto de extensão de ensino e pesquisa, desenvolvido em parceria com sua orientadora e outros colegas de pós-graduação, que envolveu a realização de um ciclo de leituras e a coordenação de uma residência artística de dança contextual, iniciada a partir do relaxamento das medidas de isolamento.
Ao se debruçar sobre o conteúdo do Corpo e Paisagem e os resultados das leituras, discussões e experiências de dança contextual realizadas no campus da Unicamp, Padovan notou o desenvolvimento de uma rede composta por atores de diferentes espécies, vivos e não vivos, algo fundamental para o acontecimento da dança contextual. Para definir esse fenômeno, a pesquisadora utiliza o termo “assembleia polifônica”, criado pela antropóloga norte-americana Anna Tsing. “Esses seres se emaranham em relações de naturezas diversas, como cooperação, complementariedade, destruição e comunhão, que produzem a potência de criação e de vida”, conclui.