Ciência entre a ficção e a história
Dissertação defendida no IEL estabelece linha do tempo que relaciona desenvolvimento da ciência com obras literárias e cinematográficas
Marina Gama
Texto
Antoninho Perri | Arquivo Pessoal
Fotos
Rafaela Repasch
Ilustração
Quem nasceu primeiro: a ciência ou a ficção científica? A pergunta é provocativa e não tem resposta definitiva. É difícil separar uma da outra, como revela a pesquisa de Suellyn Emerick em sua dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) em parceria com o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp.
O trabalho construiu uma linha do tempo que relaciona a história da ciência, ou o seu desenvolvimento, com a produção de obras de ficção científica no cinema e na literatura. A pesquisa aborda como as obras literárias e os filmes podem ser usados para discutir conceitos históricos e contemporâneos de ciência. Antes de chegar a esse tema central da dissertação, a pesquisadora passou por um processo de descobertas, mudando a temática inicial de seu estudo, mas preservando o núcleo essencial do projeto.
O trabalho, realizado sob a orientação do professor Rodrigo Bastos Cunha, começou com foco no ensino de ciências, tendo como objetivo tratar do uso de filmes de ficção científica como ferramenta pedagógica. Durante a pesquisa bibliográfica, Emerick se apaixonou pela história da ciência. Enquanto escrevia a dissertação, percebeu que queria aprofundar-se nesse campo, o que levou à mudança no foco do seu estudo.
Cunha destaca a importância da continuidade da temática de mudanças climáticas, presente desde o projeto inicial, e como Emerick a integrou em sua pesquisa sob o viés da história. “Ela conseguiu manter esse assunto no projeto. O potencial do filme de ficção para tratar dessas questões era algo que estava pensado desde o início e que é totalmente atual. Além de falar da atualidade, a pesquisa consegue colocar isso historicamente”, explica o professor.
Para sustentar a mudança, conta a pesquisadora, foi necessário um extenso levantamento bibliográfico, que continua até hoje, mesmo após a defesa do mestrado. A dissertação começa com o escritor e filósofo grego Luciano de Samósata, considerado um precursor da ficção científica, por conta do texto A História Verdadeira, publicado entre 160 d.C. e 180 d.C. Na sequência, Emerick traça um percurso histórico que passa pela Antiguidade, pelo Iluminismo e pela revolução científica. Algumas perguntas nortearam o desenvolvimento da pesquisa. “Só é científico aquilo que é moderno? Pós-revolução científica? Não. Há autores que consideram ter havido atividades científicas já na Antiguidade, como as de Aristóteles. Nesse período, já havia uma produção de conhecimento possível de ser interpretada como científica. Eu trouxe esse contexto para a pesquisa”, explica.
Emerick conta que o estudo da história da ciência lhe abriu outro mundo, permitindo enxergar que o seu desenvolvimento consiste em um processo de tentativa, erro e acerto. A importância de olhar essa evolução de uma maneira não anacrônica representou a peça-chave do seu trabalho. “Quanto mais avançamos no tempo, mais o nosso olhar para o passado muda. Hoje, por exemplo, há uma abertura acadêmica muito maior para entender a Idade Média não apenas como a idade de trevas, como essa época é percebida popularmente, mas sim como um período de muitos projetos científicos. Isso é algo que eu percebi de forma destacada nos historiadores da ciência que estudei.”
Outro ponto importante no trabalho foi perceber como faz parte da natureza da ficção científica questionar e criticar os rumos desenfreados dos avanços científicos e tecnológicos. Entre os exemplos que a pesquisadora aponta está Frankenstein, de Mary Shelley, publicado em 1818, e o filme Jurassic Park (1993), dirigido por Steven Spielberg. Em ambas as obras, há um questionamento sobre a produção da ciência sem limites éticos. “A ficção científica tem esse papel de, também, criticar a falta de limite nos avanços científicos. E isso é uma questão que discuto mais quando trato da Mary Shelley, do Frankenstein. A autora tem um discurso crítico muito forte sobre os avanços [científicos], principalmente no caso das ciências médicas de sua época. E, desde então, é possível ver isso nas obras de ficção.”
Ciência, ficção e mudanças climáticas
Graduada em geociências, Emerick conta que a escolha por estudar as ciências da terra teve a ver com seu interesse, desde muito jovem, pela ficção científica, sobretudo pelos filmes de desastres. Não é à toa que, durante a graduação, a pesquisadora se dedicou à paleoclimatologia – o estudo das variações e transformações climáticas do passado. “As ciências da terra, a geologia, são uma ciência histórica. Investigamos muito o passado. Tenho um pouco disso dentro de mim, desse prazer.”
Durante o curso de graduação, a hoje geóloga sempre se preocupou com levar seu trabalho para fora da comunidade científica e acadêmica. Por isso decidiu fazer o mestrado na área de divulgação científica e cultural. “Durante a graduação, trabalhei ao longo de cinco anos com a paleoclimatologia. Só que era um trabalho de base, muito fechado em laboratório. E quem já fez ciência básica sabe que, às vezes, nós sentimos um pouco de falta da comunicação, de falar com o público, porque a ciência básica é muito solitária, muito isolada.”
Essas duas paixões fizeram-na refletir sobre quem nasceu primeiro: a ciência ou a ficção? Emerick pondera que uma resposta definitiva não é possível porque ambas surgiram a partir do momento em que o homem foi livre para criar, para pensar em outros mundos. “O que a dissertação da Suellyn mostra é que a ficção pode até antecipar várias coisas, mas é sempre construída em cima do conhecimento em circulação da sua época”, explica o orientador.
Para Cunha, a grande contribuição do mestrado de Emerick está no fato de ela demonstrar que, “primeiro, a história da ciência não é aquilo que pensamos, não é aquela linha evolutiva bonitinha, sempre avançando para o bem-estar da humanidade – e a bomba atômica é um exemplo do que a ciência pode produzir de nocivo. Segundo, a ficção tem um papel social muito importante de abrir os olhos para os nossos limites, revelar até onde podemos ir”.