Estudo delimita novos parâmetros para estudo de raios cósmicos
Pesquisa integra parceria com Observatório Pierre Auger, na Argentina
Felipe Mateus
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Todos os dias, somos atingidos por bilhões de partículas vindas do espaço. Entre essas, estão os raios cósmicos, que surgem, por exemplo, nas explosões ocorridas no fim do ciclo de vida de uma estrela e em outros eventos cósmicos de grande magnitude. Esses eventos liberam quantidades significativas de energia, imprimindo acelerações sobre as partículas na região e, assim, produzindo raios cósmicos. Compreender sua origem abre caminhos para os cientistas estudarem o que acontece em zonas remotas do universo – sua estrutura e suas origens –, além de auxiliar na adaptação da vida terrestre a fenômenos do tipo, pois essas partículas são fontes de radiação que podem afetar a saúde humana e o funcionamento de máquinas.
Uma pesquisa da Unicamp obteve avanços importantes na busca por explicações sobre as origens dos raios cósmicos de altas energias, partículas extremamente raras e de difícil detecção. Danelise de Oliveira Franco, doutora em física pela Universidade, trabalhou com métodos para detectar nêutrons, uma das partículas de alta energia com propriedades que favorecem a identificação de suas fontes. Desenvolvido no âmbito da Colaboração Pierre Auger, um projeto internacional que reúne mais de 500 pesquisadores de 18 países, o trabalho venceu o Prêmio de Melhor Tese de 2023 no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. Franco contou com a orientação da professora Carola Dobrigkeit Chinellato.
Os raios cósmicos podem ter desde níveis baixos de energia, da ordem de 10⁹ eV – elétron-volt, medida de energia utilizada na física de partículas –, a níveis muito altos, chegando a 10²⁰ eV. Os primeiros são mais frequentes e simples de serem detectados. “Como o fluxo de partículas de baixa energia é bem maior, é possível fazer uma detecção direta. Podemos colocar detectores no topo da atmosfera e identificar as partículas primárias”, explica Franco, referindo-se à detecção feita antes de os raios entrarem na atmosfera terrestre. Ao entrar em contato com as moléculas atmosféricas, uma série de partículas é gerada, em um fenômeno chamado “chuveiro atmosférico”, formado por partículas secundárias. Já os raios cósmicos de alta energia são raros e, por isso, os métodos de detecção devem ser diferentes: a partir das características do chuveiro atmosférico gerado, os cientistas tentam identificar qual era a partícula primária. “É muito difícil que uma partícula desse tipo atravesse a atmosfera sem que a interação com outros átomos gere novas partículas”, comenta Chinelllato.
Estima-se que 90% dos raios cósmicos sejam prótons, mas outras partículas podem se comportar dessa forma, como núcleos de hélio, elétrons e pósitrons. Por terem cargas elétricas, ao longo de sua viagem pelo campo interestelar, essas partículas são defletidas, ou seja, sofrem desvios na trajetória. A exceção são as partículas neutras, como os nêutrons, que não apresentam carga elétrica e, portanto, não sofrem deflexões. Por isso, possuem trajetórias em linha reta desde sua origem até a atmosfera. Isso motivou Franco a estudá-los, pois para identificar a direção dessa possível fonte, bastaria traçar uma linha reta a partir do ponto de onde fosse detectado.
A astrofísica ressalta que os nêutrons com grande energia são importantes para o estudo de fontes galácticas de raios cósmicos. “Devido a sua alta energia, eles conseguem viajar distâncias da ordem do tamanho de nossa galáxia”, destaca a pesquisadora. Entretanto identificar tais nêutrons não é simples. Primeiramente, são raios cósmicos de alta energia, raros e cuja detecção está ligada a suas partículas secundárias. Outra dificuldade é que os chuveiros atmosféricos gerados por nêutrons são iguais aos produzidos por prótons, já que ambos são hádrons e provocam os mesmos tipos de interação com outros átomos. “Nunca detectamos um único nêutron, mas sim o excesso deles em um mesmo ponto. Como os prótons têm a trajetória alterada e os nêutrons, não, esse é um critério utilizado”, detalha a orientadora.
Parceria internacional
O trabalho se concentrou em duas etapas e teve como base os dados registrados desde 2004 pelo Observatório Pierre Auger, localizado na região de Mendoza, na Argentina. Na primeira fase, Franco buscou por fluxos de nêutrons por todo o campo de visão do observatório, tarefa que exigiu a análise de mais de 100 mil direções da atmosfera do Hemisfério Sul coberta pelos detectores do local. Na segunda etapa, a física analisou apenas áreas em que já haviam sido registradas fontes que emitem luz de alta energia e que poderiam ser candidatas a fontes de raios cósmicos, verificando se nessas os nêutrons também seriam identificados. Apesar de não ter confirmado a detecção de nenhuma fonte de nêutrons, o estudo refinou os procedimentos para isso. “Conseguimos estabelecer um limite superior para o fluxo de nêutrons. Com isso, é possível restringir e testar os modelos astrofísicos atuais”, celebra a pesquisadora.
O Brasil e a Unicamp participam da Colaboração Pierre Auger desde o início dos anos 1990, antes mesmo da construção do observatório, iniciada em 1998, com a instalação dos primeiros detectores. Atualmente, o local é a maior instalação do mundo voltada à detecção de raios cósmicos ultraenergéticos. Os estudos desenvolvidos por seus pesquisadores levaram a avanços significativos na astrofísica, como as medidas específicas do espectro de energia para detecção de raios cósmicos de alta energia e a comprovação do fenômeno da anisotropia dipolar, que identifica regiões do céu com maior incidência de raios cósmicos do que outras.
Chinellato lembra que a Unicamp contribui com as pesquisas desde o início, destacando-se o desenvolvimento do perfil das lentes empregadas em 27 telescópios, instalados no local, que captam a luz ultravioleta. A professora observa que, em cerca de 30 anos de parceria, os estudos geraram um ciclo que se retroalimenta. “À medida que novos dados são obtidos, podemos aperfeiçoar as tecnologias de detecção.” Além de vencer o Prêmio de Melhor Tese de 2023 do IFGW, Franco foi a indicada pela colaboração internacional para apresentar os resultados de sua pesquisa na Conferência Internacional de Raios Cósmicos, em Nagoya, no Japão. O reconhecimento, antes mesmo de defender a tese, mostrou que a pesquisadora estava no caminho certo. “Esse foi um dos melhores momentos do meu doutorado”, recorda.