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Como alguns economistas analisam a IA

"A Inteligência Artificial tem se tornado uma área de grande interesse para os economistas, pois sua rápida evolução está moldando diversos aspectos da economia e da sociedade."

A professora Dora Kaufman, da linha Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), publicou o artigo “O que os economistas pensam da IA” (Valor Econômico, 22/01/2024), tomando por base três autores de correntes teóricas distintas (Erik Brynjolfsson, Daron Acemoglu e Mariana Mazzucato), mas cujas análises convergem no que toca à necessidade de políticas públicas diante dos riscos de a inteligência artificial (IA) ampliar a desigualdade e a concentração de poder em poucas empresas.

A economia é uma ciência ampla, repleta de matizes teóricos e de abordagens que vão da macroeconomia à meso e microeconomia. Economistas dificilmente poderão ser inseridos em uma categoria única, e, no tema da IA, as diferenças de opinião parecem menos decorrentes da divisão convencional entre economistas conservadores e heterodoxos do que de outros tipos de crenças ou ideologias.

As implicações do poder descomunal das empresas líderes em IA foram tratadas por Joseph Stiglitz (Nobel de Economia, 2001). Korineck e Stiglitz (2021) argumentam que a IA e a concentração do poder de mercado das empresas BigTechs podem reverter os ganhos obtidos pelas economias em desenvolvimento com a globalização, agravando a pobreza e a desigualdade. Para mitigar os impactos negativos, propõem a criação de um regime fiscal global para a era digital e de uma renda básica universal para a futura substituição do trabalho, além de uma nova estratégia de desenvolvimento que privilegie investimentos em infraestrutura que reduzam o fosso digital entre os países, junto a uma política global de concorrência e de dados e à promoção de um regime internacional de propriedade intelectual mais equilibrado, que garanta uma distribuição equitativa dos ganhos do progresso tecnológico. É uma bela agenda, mas sua viabilidade parece frustrada pelos resultados pífios de iniciativas globais em campos como mudanças climáticas e o próprio combate à pobreza e à fome.

A IA tem se tornado uma área de grande interesse para os economistas, pois sua rápida evolução está moldando diversos aspectos da economia e da sociedade. Muitos autores têm trabalhado no campo microeconômico e da organização industrial, abordando o tema das plataformas digitais, dos ecossistemas e da captura de valor da inovação das empresas líderes em IA.

Essas inovações avançaram espetacularmente a partir de amplos ecossistemas (Granstrand e Holgersson, 2020; Teece 2018) estruturados pelas BigTechs, que operam em contextos multi-invenção e em mercados multilaterais das plataformas digitais (Cusumano, Gawer e Yoffie, 2019). A IA é a engrenagem-chave das plataformas, com algoritmos de recomendação e persuasão que são motores de seu funcionamento, caracterizado por fortes economias de escala, potencializando efeitos de rede, em que o valor atribuído pelos consumidores ao bem aumenta à medida que outros também o consomem (Parker, Van Alstyne e Choudary, 2016).

As plataformas digitais são modelos de negócios que coordenam a interação entre diferentes stakeholders que compartilham infraestrutura, negócios, produtos e serviços inovadores. Possibilitam a coleta e o armazenamento de amplos conjuntos de dados, empregados no treinamento de sistemas de redes neurais profundas, o tipo de IA usada como insumo fundamental nas plataformas (Jacobides, Brusoni e Candelon, 2021), com recursos algorítmicos que habilitam atividades e desempenho (Cutolo e Kenney 2021). Com isso, transformaram invenções notáveis da IA em inovações exitosas, com serviços inéditos disponibilizados nas plataformas digitais, como mecanismos de pesquisa online, assistentes de voz virtuais, recomendações de streaming, comércio eletrônico e outros.

Os ecossistemas de inovação da IA são mais amplos e não se confundem, ainda que o incorporem, com o ambiente (de negócios) das plataformas digitais. Envolvem, além de sistemas de rede, sensores inteligentes, infraestrutura física de armazenamento em data centers e transmissão por satélites e cabos submarinos das próprias BigTechs, elevada e especializada capacidade computacional, recursos humanos qualificados e arranjos institucionais que facilitam a interação e viabilizam a apropriação de valor gerado ao longo da cadeia (Bastos, 2021).

As preocupações macro e as análises micro e setoriais têm alimentado o debate e sustentado a formulação de políticas públicas para IA nos países desenvolvidos, onde propostas de regulação são apenas uma das ações em curso, não necessariamente a mais importante. A regulação europeia dos usos da IA recém-aprovada está inserida em uma estratégia ampla de alcançar a soberania digital. Visa garantir condições para a utilização e o desenvolvimento dessa poderosa tecnologia pelos países do bloco. Foi precedida por extenso conjunto de medidas (proteção de dados pessoais e privacidade; proteção, governança e compartilhamento de dados no continente; e diretivas antitruste para lidar com o padrão diferenciado de competição das plataformas digitais) e, principalmente, por forte apoio de alguns governos e da União Europeia para a instalação de ampla infraestrutura computacional e de dados e a construção do ecossistema de inovação regional.

Se o objetivo da política pública for desenhar estratégias que busquem não apenas o uso seguro, mas a produção de inovações da IA dentro do princípio de soberania tecnológica (Edler et al., 2021), é importante relativizar a quase unanimidade sobre a regulação pública e indagar qual regulação nos interessa. Regras não são neutras, mesmo quando impostas horizontalmente pelos governos, uma vez que países, economias e empresas não são iguais. As incertezas são grandes, porque as tecnologias da IA ainda não estão completamente desenvolvidas, os ecossistemas passam por reestruturação, e não há nem mesmo um modelo de negócios e de apropriabilidade claro para os modelos recentes. Isso revela o estado da arte, em que estamos tateando o animal, um pouco às cegas, correndo o risco de defini-lo pela tromba ou pelo rabo e de ignorar o corpo e o conjunto. Afinal, o diabo mora nos detalhes. Que tal começarmos pela pergunta sobre como estamos em relação aos requisitos básicos para utilizar a IA para a promoção da competitividade das empresas no Brasil, da eficácia e eficiência do Estado e para o desenvolvimento em geral? A resposta pode nos indicar os caminhos que devemos seguir, se quisermos ter alguma voz nesta área que marcará o futuro em geral.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Antônio Márcio Buainain é docente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, pesquisador do Centro de Economia Aplicada, Agricultura e Meio-Ambiente (CEA-IE) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED)

Valéria Delgado Bastos é economista do BNDES (aposentada), mestre em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) (PPGE) e doutoranda em Propriedade Intelectual e Inovação no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)

Sergio Medeiros Paulino de Carvalho é docente da Academia de Propriedade Intelectual e Inovação do INPI e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a Organização da Pesquisa e da Inovação (GEOPI) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp

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