Personagens pouco lembrados e novas interpretações emergem em obra escrita por João Quartim de Moraes e Ligia Osório Silva
O presidente de Portugal, Marcelo Rabelo de Sousa, declarou, no dia 25 de abril de 2023, que o país deveria pedir desculpas pelo seu legado colonial. Foi a primeira vez que um chefe de Estado português sinalizou uma possível retratação pela exploração e pela violência praticadas contra povos originários e africanos escravizados. Se o Estado português historicamente relutou, por mais de 200 anos, em abordar o assunto, de outra parte, os pesquisadores constituíram uma vasta literatura documentando o período, dentre eles os professores da Unicamp João Quartim de Moraes (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) e Ligia Osorio Silva (Instituto de Economia). Recentemente, os docentes lançaram o livro Novo Mundo: metamorfoses da colonização, trazendo novas abordagens e interpretações sobre a colonização europeia.
A obra, publicada pela Editora da Unicamp, fornece “novos subsídios e pontos de vista complementares para o estudo das condições históricas, das consequências sociais e da justificação ideológica da colonização do Novo Mundo”, segundo os autores. Parte das pesquisas contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e serviu-se de documentos de difícil acesso guardados na Biblioteca Nacional da Espanha e na Biblioteca Nacional da França.
Moraes, referência na área do pensamento político, detém-se fundamentalmente nos séculos XV e XVI, introduzindo a história do reencontro de dois ramos da espécie Homo sapiens que haviam se separado no período paleolítico. Ele explica, com esse episódio, o porquê da expressão Novo Mundo, para além de não dar ao território o nome de um de seus colonizadores, Américo Vespúcio. “Falar ‘Novo Mundo’ não é questão de pura ideologia. É porque esse mundo é novo em todos os sentidos. Esse foi o último continente em que o Homo sapiens pisou, há cerca de 20 mil anos.”
Silva, referência em pensamento econômico e questões agrárias, trata das mudanças no comportamento europeu perante os povos encontrados aqui, desde o mito do “bom selvagem” à expropriação de terras, calcada na doutrina liberal de John Locke. “Na primeira fase do pensamento europeu, é um deslumbramento, acham tudo maravilhoso. E há o reverso disso, depois de eles terem começado a ‘endeusar’ a propriedade privada. O efeito que isso teve é o que podemos ver até hoje: uma luta para que os povos indígenas possam permanecer nas suas terras.”
A professora também analisa, na obra, a imigração europeia rumo ao Brasil, movida pela situação socioeconômica dos emigrantes em suas terras natais, pela necessidade de força de trabalho da parte do Estado brasileiro e pela política de branqueamento. A intenção de atrair franceses merece um olhar especial da parte dela. “Nesse caso, pode-se dizer que foi um fracasso, apesar de tanta vontade de branquear a população.”
O motor da intolerância
No dia 1º de novembro de 1478, Isabel de Castela e Fernando de Aragão acabaram com uma tradição de tolerância e instituíram a Inquisição. Se em 1078 o rei Afonso VI de Castela e Leão intitulava-se o “rei de duas religiões” e respeitava a diversidade cultural e religiosa, quatro séculos depois passou a reinar o fundamentalismo.
Em 1492, Isabel tomou Granada, cuja população era islâmica, e decretou, também, a erradicação do judaísmo em Castela – atual região da Península Ibérica. “Isabel assinou um decreto de expulsão dos judeus, deu prazo para eles irem embora e foi um horror. Eram centenas de milhares. Isso teve dimensões quase que genocidas, tudo em nome da ‘verdadeira fé’. Todos os manuscritos árabes, salvo os de medicina, porque eles não eram bobos, foram queimados. Isso é o fanatismo, é a intolerância religiosa. Então, havia uma tolerância medieval na alta Idade Média que foi substituída por um Estado intolerante, com sua máquina estatal de terror, com o terrorismo de Estado, a Inquisição”, avalia o professor.
Isabel também patrocinou a expedição de Cristóvão Colombo. O navegador foi o primeiro a chegar à América, em 1492, dando início ao império colonial espanhol. Ele atracou, primeiramente, em uma ilha que hoje integra as Bahamas. Em viagens posteriores, chegou às Antilhas, à Martinica, à região de Porto Rico, a Trinidad, à Jamaica e a Honduras. Os reis católicos encontraram, nas colônias, além de vantagens econômicas, também um terreno fértil para a propagação do cristianismo, com a catequização forçada.
Se uma espécie de “missão” católica serviu como um dos argumentos para o expansionismo, não há como encobrir o fato de que o principal motivo da empreitada era econômico. “Precisamos ressaltar outras motivações, como a necessidade de madeira para navegação, porque eles estavam justamente se desenvolvendo nesse aspecto. Tinha a questão do açúcar, que já era bem conhecido e cada vez mais desejado na Europa”, aponta Silva, ressaltando que o produto era muito valorizado por conservar os alimentos.
Para Portugal, cujo processo de unificação ocorreu precocemente quando comparado ao de outros países da Europa, a expansão além-mar passou primeiramente pela costa africana, já na metade do século XV. Em 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao território que depois viria a ser batizado de Brasil. A disputa com a Espanha pelo domínio das terras produziu as guerras coloniais que se estenderam até o século XIX e que também envolveram, em diferentes períodos, outros países, como a Holanda e a França.
Velhos embates
Cinco séculos depois de iniciada a colonização das Américas, persistem reflexos do projeto colonial, como as desigualdades e o racismo. Também seguem atuais as lutas das populações indígenas por permanecer em suas terras. O impasse se expressa, por exemplo, na atual mobilização dos indígenas contra a tese do marco temporal, segundo o qual só poderiam ser demarcadas as terras em que as populações originárias estivessem presentes no ano de 1988, ignorando os séculos de destituição territorial.
Os embates a respeito de direitos indígenas, lembra o professor Moraes, já existiam no início da colonização. Havia, entre os europeus, aqueles que eram contrários à exploração dos nativos e que os reconheciam como os verdadeiros donos da terra.
“Do ponto de vista da história da ideologia colonial, um nome, que ficou um pouco esquecido, é muito importante: Francisco de Vitória. Ele elaborou a primeira formulação dos direitos dos povos conquistados, [dizendo que] ninguém era senhor da terra dos índios”, afirma, lembrando que essa visão desagradou a Carlos V, então rei da Espanha, e levou Vitória a ser malvisto na coroa.
O docente destaca os confrontos entre o frade dominicano Bartolomeu de Las Casas e o filósofo Juan Ginés Sepúlveda. Enquanto Sepúlveda considerava os indígenas inferiores e dizia que deveriam subjugar-se aos colonizadores, Las Casas se opunha e denunciava atrocidades cometidas contra os povos originários. Na Junta de Valladolid (debate acerca dos direitos humanos dos indígenas), convocada por Carlos V, eles foram convidados a expor seus argumentos.
O depoimento e os argumentos de Las Casas contra seu erudito oponente certamente contribuíram para que Carlos V e Felipe II, seu sucessor, promulgassem novas leis proibindo a escravização dos indígenas do Novo Mundo. Elas não foram muito mais eficazes do que as anteriores, mas expunham os transgressores, grandes ou pequenos, à possibilidade de ter de prestar contas à Justiça imperial. Moral e politicamente, elas atestam, ao menos, que, no auge de seu poderio, a Coroa espanhola levou a sério as denúncias sobre a “destruição das Índias” e os argumentos em defesa dos direitos naturais dos “bárbaros”.
(trecho do livro Novo Mundo: metamorfoses da colonização)
À exploração dos nativos somou-se ainda a escravização africana, que passou a superar a indígena, em número, em meados do século XVII. No entanto, observa Silva, “a escravização do africano não atrapalhou a exploração do indígena como mão de obra escrava”. Houve uma coexistência desses dois tipos de escravidão e o interesse no tráfico de africanos não ocorreu para poupar os indígenas, mas porque esse era um negócio lucrativo e já praticado em outras regiões, como no Arquipélago da Madeira, nos Açores e em Cuba, cuja população originária foi dizimada rapidamente com a chegada dos europeus.
“Um dos centros da colonização foram as ilhas do Caribe. Em Cuba, o que houve? Extermínio rápido. Las Casas o descreve, tanto na Hispaniola, onde ficam o Haiti e República Dominicana, como em Cuba. E foram exterminados não só porque eles resistiram e foram massacrados pelas armas, mas também porque morreram por contágio, na chamada guerra bacteriológica, em grandes epidemias”, analisa Moraes. Para o docente, o extermínio dos povos originários contribuiu para a escravização precoce de negros. “Cuba já era um centro [econômico], o açúcar prosperava ali e arrastou a escravidão atrás dele.”
Imigração e expropriação de terras
Transformações ocorridas na forma como os europeus viam os povos nativos, um dos temas pesquisados pela professora Silva, têm relação com o percurso histórico e com as formulações filosóficas e políticas do velho continente. Sob a influência de Locke, no final do século XVII, concebe-se a noção de propriedade privada e da produtividade. Os povos indígenas, por não terem uma cultura de trabalhar explorando recursos à exaustão em nome de gerar excedente, foram considerados um empecilho à produtividade. Somam-se a isso a abolição da escravidão e o esforço para impedir o acesso da população negra à terra, fatores que impulsionaram a campanha pela colonização europeia dos séculos XIX e XX.
Na prática, para que os europeus e seus descendentes pudessem se apropriar desse manancial de riquezas, era preciso intensificar o processo de “esvaziamento” do território da presença indígena, visando à ocupação das suas terras, e empregando para isso todos os meios disponíveis […] Os novos colonos, seguindo os ingleses, perceberam os índios por meio de uma concepção etnocêntrica e preconceituosa como seres inferiores, não merecedores das terras que ocupavam. Ignoraram (ou desprezaram) o fato de os índios viverem em harmonia com a natureza enquanto iniciavam um processo de exploração dos recursos naturais à disposição sem se preocuparem com o desgaste que impunham ao equilíbrio ecológico. Ao mesmo tempo trouxeram inúmeras doenças antes desconhecidas.
(trecho do livro Novo Mundo: metamorfoses da colonização)
A professora ressalta que, com a propaganda e a elaboração da Lei de Terras, por exemplo, o país pouco se preparou para receber imigrantes, embora houvesse um esforço do Estado em atraí-los. A legislação, analisa, tem reflexos ainda hoje na organização agrária do país, assim como na concentração de riquezas e no rastro de violência e discriminação sobre a qual se fundou a sociedade brasileira. “Está faltando ainda mexer em uma base que não foi alterada e que tem a ver com a desigualdade e o desenvolvimento, queiramos isso ou não.”