Efeito do canabidiol em cérebros de camundongos
Pesquisa inédita da Unicamp identifica mudanças em milhares de genes
Mariana Garcia
Texto
Antoninho Perri
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Em um estudo pioneiro no mundo sobre os efeitos moleculares do canabidiol (CBD) em cérebros de camundongos, o biólogo João Paulo Machado detectou alterações na função de cerca de 3 mil genes em neurônios do hipocampo após a administração da substância. A descoberta, fruto de uma pesquisa em curso no Laboratório de Eletrofisiologia, Neurobiologia e Comportamento (Lenc) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, foi publicada no Acta Neuropsychiatrica, periódico científico editado pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
O trabalho iniciou-se em 2019, com o ingresso de Machado no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Biologia Molecular e Morfofuncional do IB. Hoje doutorando, o pesquisador dedica-se à análise da expressão gênica, processo que se dá quando genes se tornam ativos, no interior da célula, para transmitir mensagens ordenando a produção de alguma substância, normalmente necessária para a realização de uma função celular específica – como gerar mais ou menos energia. Esse fluxo de informações contém detalhes sobre o funcionamento da célula, indicando a ocorrência de variações comportamentais. A investigação de Machado, inserida no campo das ciências ômicas e denominado transcriptômica, expande a compreensão sobre as funções em organismos vivos.
A eficácia da substância encontrada na Cannabis sativa para tratar certos tipos de epilepsia serviu de inspiração para Machado delinear seu projeto inicial de mestrado, embasado no reconhecimento científico da capacidade do canabidiol em reduzir os sintomas e a ocorrência de crises convulsivas em alguns casos. A constatação empírica da melhora de indivíduos tratados com CBD, diz o pesquisador, sugeria uma atuação do composto sobre a expressão gênica dos neurônios.
Partindo dessa hipótese, o biólogo procurou o professor do IB André Vieira, coordenador do Lenc, que já trabalhava com análise transcriptômica e com a enfermidade. “Embora se saiba que o canabidiol funciona para tratar alguns tipos de epilepsia, faltam informações sobre o que exatamente [a substância] faz no sistema nervoso. É preciso ver por que causa certos efeitos e entender seu mecanismo de atuação”, ressalta o docente, que se tornou orientador de Machado. “O trabalho do João é o primeiro do mundo com o CDB a analisar alterações no transcriptoma do cérebro de camundongos induzidas por essa molécula. Os anteriores, com animais, concentraram-se no controle das crises convulsivas e na observação comportamental.”
Ao constatar que não havia qualquer registro na literatura científica sobre a ação molecular do canabidiol em cérebros saudáveis, Machado e Vieira concluíram que era preciso suprir primeiro essa lacuna. “No organismo, o CBD interage principalmente com o sistema endocanabinoide, que é responsável por modular [alterar] todos os outros. Devido a essa capacidade de se comunicar com outras moléculas, esperávamos que fosse modular a expressão gênica. Só não esperávamos que a resposta seria tão significativa. Foi uma surpresa”, afirma o doutorando.
Financiamento e metodologia
O estudo foi viabilizado a partir de uma parceria com a pesquisadora Valéria de Almeida, à época pós-doutoranda no Laboratório de Neuroproteômica do IB, e com o professor José Alexandre Crippa, da Universidade de São Paulo (USP), que forneceu a molécula de canabidiol para a execução dos experimentos. O projeto é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Machado trabalhou com dois grupos de camundongos, além de dois grupos-controle que receberam placebos. O primeiro conjunto de animais recebeu uma dose única de canabidiol em apenas um dia. A mesma quantidade foi administrada para o segundo grupo, porém por sete dias consecutivos. “Foi escolhida uma dosagem considerada, na literatura, compatível com aquela utilizada para a contingência de crises convulsivas”, explica o biólogo.
No Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Brainn, na sigla em inglês, parte do programa Cepid da Fapesp), sediado na Unicamp, Machado utilizou uma técnica conhecida como microdissecção a laser para coletar populações de uma célula cerebral denominada CA1 ventral, encontrada especificamente na parte inferior do hipocampo – região mais afetada pelas convulsões. “Decidimos explorar quais seriam as mudanças em uma área que é muito importante no contexto da epilepsia e de outras condições neuropsiquiátricas. Nossa hipótese era que o CBD, administrado naquela dose, deveria mudar a maquinaria molecular de áreas do cérebro críticas para as crises”, explica Vieira.
Em seguida, foi feito um trabalho de bioinformática, envolvendo tecnologias como o RNA-seq, para obter o sequenciamento genético do material – além da identificação e contagem dos genes expressos. Machado pôde, então, interpretar os dados. “Não basta sequenciar. É preciso saber quais são esses genes, quantos são, com o que estão envolvidos e onde trabalham”, justifica. “O camundongo tem cerca de 50 mil genes diferentes. Sem o auxílio da informática, levaríamos anos para concluir essa análise. Com a ferramenta, é possível tentar encontrar padrões, detectar famílias de genes que desempenham a mesma função ou têm funções associadas, ver quais mudaram, o que é muito mais interessante do que analisar um ou outro gene isoladamente”, completa o professor.
Enriquecimento de vias biológicas
Ao concluir a análise transcriptômica, Machado encontrou uma relação entre a frequência da aplicação do canabidiol e o volume de genes alterados. Nos animais que receberam CBD por um dia, o biólogo contou modulação na expressão de cerca de 300 genes. Já no grupo em que a substância foi aplicada por sete dias, foram 2.924 genes com expressão modificada. “Isso não significa que uma dose menor não traria efeitos comportamentais ou redução de sintomas. Nossa análise se concentrou nos efeitos moleculares”, ressalta. Em seu doutorado, o biólogo repetiu o processo para avaliar a repercussão nas células localizadas na parte superior do hipocampo, chamadas CA1 dorsal. Os resultados preliminares, incluídos no artigo da Acta Neuropsychiatrica, corroboram os achados anteriores, porém em menor escala.
Ao categorizar os transcritos, o pesquisador percebeu que a maioria das modulações se concentrou em quatro famílias de genes ligadas ao funcionamento de estruturas tais como: mitocôndria, a fábrica de energia da célula; ribossomo, responsável pela produção de proteínas; e cromatina, que controla o processo de expressão gênica. Machado notou, ainda, o aumento da expressão de genes envolvidos na organização das sinapses – a comunicação entre os neurônios. “João viu que alguma alteração funcional ocorrida dentro da célula promoveu uma mudança em grande escala na expressão gênica, causando um enriquecimento de vias biológicas [interação de moléculas dentro da célula, resultando em algo novo]. Porque todos [os genes] foram alterados juntos”, pondera o orientador.
Embora não se possa atestar que os efeitos terapêuticos do canabidiol contra a epilepsia sejam causados pelas oscilações vistas por Machado, sua pesquisa sugere a existência de uma relação entre o uso de CBD e uma economia de energia celular que poderia resultar em um efeito protetor do sistema nervoso. “Esse trabalho é um marco para nosso grupo de pesquisas e para o entendimento que se tem dessa molécula na academia. É o ponto de partida de uma nova linha que se inicia no Lenc”, finaliza o professor.