“É como estar em frente ao espelho olhando aquilo que as pessoas dizem que você é.” O cantor, violonista e compositor João Bosco, ícone da música brasileira, recorre à comparação para descrever a experiência de assistir, no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, a uma série de apresentações de músicos, pesquisadores, alunos e professores que se debruçaram sobre sua obra.
A frase foi registrada durante a 8ª edição do Festival de Música Contemporânea Brasileira, dedicada à vida e obra de João Bosco e da musicista Kilza Setti. Considerado um dos principais no país, o evento une pesquisa e performance musical. A programação do evento transcorreu entre 22 e 25 de maio no IA da Unicamp, no Teatro Castro Mendes e no Hospital Infantil Boldrini – este último com uma oficina de musicoterapia.
Ao refletir sobre os estudos apresentados na Unicamp, João Bosco recorda-se, bem-humorado, de que sua pesquisa musical era feita nos botequins de Ouro Preto, na base da intuição e da informalidade. “Utilizava algo que trazia dentro de mim, como se fizeram grandes craques do futebol brasileiro nos campos de várzea”, afirma o compositor. Natural de Ponte Nova, Bosco viveu a efervescência cultural de Ouro Preto, quando cursava engenharia civil na Escola de Minas. “Lá, por exemplo, pude conhecer o Vinícius de Moraes e conviver com ele.”
Com 52 anos de carreira e em plena atividade artística, João Bosco acaba de lançar Boca Cheia de Frutas, álbum de canções inéditas, dentre as quais uma com seu “parceiro definitivo” Aldir Blanc. Além de dez novas canções, Boca Cheia de Frutas traz uma releitura de O cio da Terra, de Milton Nascimento e Chico Buarque. João Bosco explica que as canções resgatam a ancestralidade brasileira presente nos povos indígenas, nas suas florestas. “A terra da ancestralidade, essa terra que, hoje, está em risco.”
Dentro do violão de João, cabe um Brasil inteiro
A Unicamp é um celeiro de pesquisas e estudos sobre a obra de João Bosco, segundo o músico e professor Fernando Hashimoto, diretor do IA. Já o jornalista, crítico musical e pesquisador Lucas Nobile, que mediou a mesa-redonda Coração Tropical, afirmou que “dentro do violão de João Bosco, cabe um Brasil inteiro pela diversidade de gêneros musicais e ritmos”.
Para Nobile, a parceria entre João Bosco e Aldir Blanc está em outro patamar na história da música brasileira, é “um encontro raro”. O próprio João Bosco reconheceu o relevo de seu “parceiro definitivo” para sua obra. “O grande segredo é você encontrar seu par, aquele que entende a palavra que existe no seu som. Isso foi muito bem discutido aqui, principalmente, no que diz respeito ao meu parceiro definitivo que é o Aldir Blanc. É como se fosse uma pessoa só, você não vê uma música superposta a uma letra ou uma letra superposta a uma música. Você vê uma fusão de um som com a palavra produzindo uma unidade sonora poética.”
A mesa-redonda contou com a participação do diretor e roteirista de cinema Marcus Fernando e do músico, pesquisador e ex-aluno do IA Marcus Almeida. Almeida analisou em mestrado defendido na Unicamp, em 2009, os elementos rítmicos, harmônicos e melódicos de João Bosco.
Para o pesquisador, o virtuosismo violonístico de João Bosco desenvolveu-se, sobretudo, como parte de um projeto maior pensado pelo artista enquanto parceria com Aldir Blanc. “Nesse projeto artístico que estavam construindo na década de 1970, eles estavam fazendo algumas opções, com características como a escolha pelos desfavorecidos e marginalizados. E o João Bosco encontrou no violão uma maneira de sonorizar essas letras”, contou Almeida.
Pioneira na etnomusicologia, Kilza Setti musicou cultura caiçara
A musicista, compositora e antropóloga Kilza Setti também foi homenageada durante o Festival de Música Contemporânea Brasileira. A programação do segundo dia do Festival na Unicamp foi dedicada integralmente às obras da artista.
Kilza Setti tem trajetória relevante na área da composição, com peças para diversas formações e trabalhos premiados nacionalmente. A musicista é pioneira no país na área da etnomusicologia, campo que estuda a música em seu contexto cultural.
Para a pesquisadora Guilhermina Lopes, doutora em música pela Unicamp, Kilza Setti foi precursora no Brasil ao pesquisar o repertório musical dos caiçaras. Ela é autora da obra Missa Caiçara (1990), que emprega instrumentos dos pescadores para expor sua riqueza cultural. “Kilza Setti também estudou música indígena e levou essa música para as temáticas da sua composição”, completou Lopes. A pesquisadora ministrou uma palestra durante o Festival sobre a amizade entre Kilza Setti e o compositor, musicólogo e pianista português Fernando Lopes-Graça.
Ainda no campo da etnomusicologia, Kilza Setti musicou textos de trabalhadores invisíveis, como ela mesma denominou. “São metalúrgicos, peões de obra, guardas-noturnos, datilografistas… São trabalhadores que ficam esquecidos, e acho que podíamos prestar mais atenção neles. Os caiçaras também estavam muito apagados, desfavorecidos, perdendo terras”, afirmou a artista.
Para a organizadora Thaís Nicolau, ex-aluna da Unicamp, o Festival buscou aproximação entre a produção acadêmica e o público, unindo dois homenageados que dimensionam a relevância da cultura brasileira.