Arte na América Latina após a Bienal
Maria de Fátima Morethy Couto enfatiza efervescência artística no país entre as décadas de 1950 e 1970
Maria Vitória Gomes Cardoso
Especial para o Jornal da Unicamp
Andres Otero/Fundação Bienal de São Paulo
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A demanda por desenvolvimento da cultura brasileira em meados do século 20 é o ponto de partida pelo qual o livro A Bienal de São Paulo e a América Latina descreve a influência do evento no panorama nacional e nos países vizinhos. Maria de Fátima Morethy Couto, professora do Instituto de Artes (IA), destaca o caráter fundamental da Bienal de SP, criada há 73 anos, para a difusão da arte no continente, priorizando o contexto artístico do país entre 1950 e 1970.
Aspectos como o surgimento posterior de mostras inspiradas na Bienal, as polêmicas e os jogos de interesse nas premiações, além do fluxo entre brasileiros e as comunidades artísticas americanas e até mesmo europeias são explorados pela pesquisadora. A docente dedica-se ao tema desde 2011, procurando entender como se deram as estratégias de legitimação internacional da produção e da circulação da arte em nações tidas como periféricas em relação aos centros de referência europeus. Nesta entrevista, a autora explica como o evento foi concebido e a repercussão político-cultural de sua existência.
Jornal da Unicamp – Quais foram as motivações para a publicação do livro?
Maria de Fátima Morethy Couto – O livro é um dos resultados da pesquisa que desenvolvo desde 2011 a fim de investigar as conexões existentes, no continente sul-americano e nos países da América Latina em geral, entre o campo da história da arte e o da crítica de arte. A obra toma a Bienal de São Paulo como estudo de caso, privilegiando suas conexões continentais, e contextualiza seu surgimento como resposta aos anseios, de parte da sociedade brasileira, por uma modernização cultural.
JU – Como se deu a conexão da Bienal de São Paulo com outros países da América Latina?
Maria de Fátima Morethy Couto – Concebida nos moldes da Bienal de Veneza, a Bienal de São Paulo inseriu o Brasil na rota das grandes exposições internacionais e forneceu uma vitrine, para os países vizinhos, do que se passava no mundo da “alta arte”, importando modas e tendências, mas, simultaneamente, gerando polêmicas sobre o que era apresentado e ampliando, assim, a discussão sobre a produção contemporânea. Também forneceu um modelo bem-sucedido de aliança cultural-empresarial que se mostrou atraente para gestores culturais de outros países. Vale enfatizar, por exemplo, o número elevado de países da América Central e do Caribe que integraram o evento desde suas primeiras edições, buscando visibilidade, ainda que relativa ou precária, para seus artistas.
JU – Como essa interação da Bienal com o continente promoveu os artistas latino-americanos?
Maria de Fátima Morethy Couto – Mesmo sem jamais adotar uma postura latino-americanista de defesa de uma produção regional, a Bienal de São Paulo propiciou a formação de redes de contato continentais inéditas e o estabelecimento de relações interinstitucionais mais consistentes, gerando assim novos fluxos culturais. A lógica geopolítica do evento, herdada de Veneza, bem como sua escala grandiosa e seu caráter transnacional provocaram o deslocamento programado de um contingente expressivo de artistas, curadores, críticos, jurados e visitantes, além de marchands e colecionadores, transformando não apenas a vida cultural de São Paulo, como também interferindo no debate nacional e continental. Todavia uma das hipóteses que defendo é a de que a organização de grandes mostras periódicas de arte e a circulação de agentes culturais de peso na América Latina dos anos 1950 e 1960 revelaram-se estratégias incapazes de assegurar a legitimação internacional de uma produção oriunda de países (ou de um continente) que continuavam a ocupar um lugar periférico no campo político e econômico.
JU – Como a relação da Bienal com a América Latina motivou a criação de outros eventos?
Maria de Fátima Morethy Couto – Parto da premissa de que a Bienal de São Paulo impulsionou a criação de outras mostras de arte contemporânea, de caráter recorrente e em diferentes países vizinhos, ao demonstrar sua viabilidade e eficácia promocional. O êxito do evento brasileiro favoreceu a propagação de mostras artísticas similares, de maior ou menor escala, por outros países latino-americanos entre os anos de 1960 e 1970, em sua maioria dependentes do apoio do setor privado. Cabe assinalar que os formatos dessas exibições eram variados e mutantes e permitiam explorar uma ou mais técnicas, estabelecer recortes temáticos, cronológicos, etários ou geográficos diferenciados, realizar convites a determinados artistas ou países ou aceitar representações nacionais montadas por órgãos governamentais ou por comissões específicas.
JU – Outro aspecto abordado na obra são as premiações. É possível identificar alguma tendência, ou alguma similaridade, na avaliação e na composição dos jurados?
Maria de Fátima Morethy Couto – Devemos analisar os prêmios concedidos na Bienal de São Paulo em conjunto com o que ocorria no cenário internacional daqueles anos, uma vez que mostras desse tipo serviam para impulsionar ou consolidar não apenas a carreira de artistas, mas também a de críticos, curadores e marchands em um circuito bastante competitivo. Ao retomar embates que marcaram algumas premiações não apenas da Bienal de São Paulo, mas também de outras grandes exposições de arte realizadas no período, demonstro como os agentes envolvidos na organização desses certames — em sua grande maioria homens e brancos — não eram peças inanimadas no tabuleiro de interesses dos centros hegemônicos e, sim, agentes ativos que atuavam em seu próprio interesse ou no dos grupos e instituições.
Título: A Bienal de São Paulo e a América
Latina – Trânsitos e tensões (1950-1970)
Autor: Maria de Fátima Morethy Couto
Edição: 1a
Ano: 2023
Páginas: 225
Dimensões: 14 cm x 21 cm