Microrredes de energia: o desafio regulatório
Versões reduzidas de redes convencionais esbarram em entraves legais
Felipe Mateus
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Antonio Scarpinetti | Campus Sustentável/Reprodução
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Em novembro de 2023, mais de 2 milhões de moradores da Grande São Paulo sofreram com a falta de energia elétrica causada por fortes chuvas. Algumas localidades da capital paulista chegaram a ficar mais de cem horas no escuro. As sucessivas quedas de energia provocaram questionamentos à Enel, empresa responsável pela distribuição desse insumo na cidade, o que culminou em um pedido de abertura de processo disciplinar junto à Agência Nacional Energia Elétrica (Aneel) feito pelo Ministério de Minas e Energia. O problema que afetou a maior cidade do país é uma triste rotina em áreas distantes dos grandes centros. Um estudo de 2019 do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) aponta que mais de 990 mil moradores da Amazônia Legal não têm acesso à eletricidade.
Do ponto de vista tecnológico, esses problemas poderiam ser solucionados a partir da instalação de microrredes de energia, versões em escala reduzida das redes convencionais, capazes de gerar, armazenar e distribuir, de forma autônoma, eletricidade a uma comunidade, como em um condomínio ou em uma aldeia indígena, por meio de placas de energia fotovoltaica, por exemplo. No entanto, existem entraves jurídicos para que essa seja uma alternativa que garanta o acesso mais amplo à energia elétrica.
Conceber um modelo regulatório para microrredes de energia é o objetivo de uma pesquisa de doutorado da Faculdade de Energia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp. Unindo conhecimentos da engenharia e do direito, os pesquisadores, ligados ao Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (CPTEn), avaliam diversos fatores que interferem no setor e propõem soluções que podem impulsionar não só o acesso, mas a resiliência do setor energético. A pesquisa é de autoria de David Felice Baptista, contou com a orientação de Luiz Carlos Pereira da Silva, professor da Feec, e a coorientação de Luís Renato Vedovato, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade.
Responsabilidades
Ao contrário do que muitos podem pensar, a instalação de painéis solares em uma residência ou em um condomínio não torna os moradores livres de sofrerem os efeitos de blecautes. Hoje, a legislação brasileira não permite que uma microrrede funcione de forma ilhada, desligada da rede principal. “Para compatibilizar painéis com a rede de energia, é necessário um inversor de frequência. Devido a um mecanismo de proteção, o inversor só funciona quando a rede principal está energizada. Quando a rede desliga, o dispositivo automaticamente deixa de funcionar também”, explica Baptista. As exceções são restritas à manutenção de atividades essenciais, como o funcionamento de hospitais. “Se o ilhamento não é permitido, a existência das microrredes não faz sentido”, aponta. Segundo o engenheiro, que também se formou em direito em 2022, esse é o principal desafio a ser solucionado do ponto de vista jurídico.
A Constituição Federal estabelece que a União é responsável pela geração e distribuição de energia. Eventualmente, o Estado pode conceder essa responsabilidade a empresas públicas ou privadas. Todas as determinações jurídicas tratam da relação entre o Estado e as concessionárias. A questão crucial, então, é como caracterizar as microrredes dentro dessa previsão jurídica. Nesse contexto, uma das perguntas que Baptista abordou refere-se ao que acontece com as trocas de energia em uma microrrede ilhada. Segundo o pesquisador, se as trocas de energia forem configuradas como distribuição, isso pode ser visto como uma invasão da competência das concessionárias, afetando a forma de caracterizar juridicamente as microrredes. A pesquisa de Baptista também explorou outras questões importantes: no caso dessas novas tecnologias, de quem deve partir a infraestrutura para realizar a distribuição? E, em caso de falhas ou outros problemas, quem deve ser responsabilizado?
Outro ponto de atenção é evitar que a ampliação das microrredes seja prejudicial para o modelo de negócios das concessionárias de energia. Segundo os pesquisadores, é preciso que os limites entre a atuação e a cobertura das microrredes e das empresas sejam bem estabelecidos, caso contrário, o acesso à energia, sobretudo nas periferias, pode ser prejudicado. “A regulação deve olhar para todos esses aspectos, de forma que seja possível garantir outros direitos sem ferir aqueles já estabelecidos anteriormente”, argumenta Silva.
A tese aponta duas soluções possíveis para esses entraves. A primeira seria considerar toda a comunidade – os apartamentos de um edifício ou as residências de um bairro – que usufrui de uma microrrede como um único consumidor. Nesse caso, as trocas de energia não são consideradas como distribuição, o que não entraria em conflito com a competência das concessionárias. Outra saída seria considerar as microrredes como entidades autorizadas à exploração de atividade econômica, figura jurídica existente nas Cooperativas de Eletrificação Rural, por exemplo. Mesmo nesses dois casos, ainda haveria uma série de pendências a serem solucionadas rumo a um marco regulatório, como a transferência de infraestrutura pública de transmissão para o poder privado e a forma de atuação dos órgãos reguladores, a exemplo da Aneel. “De qualquer forma, o objetivo é atender à população. Isso é o que importa”, defende Baptista.
Ciência de fronteira
As pesquisas em torno das microrredes têm tido destaque com a participação da Unicamp no Projeto Merge (Microrredes para Energia mais Eficiente, Resiliente e Verde, em tradução livre). A iniciativa inscreve-se em um programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Aneel, em parceria com a CPFL Paulista, que prevê o desenvolvimento, a implementação e os testes de quatro microrredes na região de Campinas, sendo uma delas no campus de Barão Geraldo. A complexidade do projeto exige pesquisas interdisciplinares, como a realizada por Baptista.
O trabalho interdisciplinar também possibilita que a produção científica subsidie a elaboração de políticas públicas e a diversificação do setor produtivo. “Precisamos de vários atores conversando para elaborarmos uma regulação que atenda a todos”, justifica Vedovato. Em julho de 2023, pesquisadores envolvidos com o tema participaram de uma consulta pública, promovida pelo Ministério de Minas e Energia, com propostas que incluem o fomento à energia sustentável e às microrredes, para a atualização dos critérios utilizados na renovação de concessões do setor energético. O próximo ciclo de renovações terá início em 2025. “As inovações vão ocorrer independentemente da vontade das distribuidoras”, aponta Silva. “Concessionárias com visão de longo prazo desenvolverão projetos ligados a essas inovações e estarão preparadas para lidar com elas”, conclui o docente.