Uma linha reta de mais de 2.800 quilômetros separa a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, localizada no Estado do Pará, da Unicamp, em São Paulo. A distância é longa, mas não impede a partilha de conhecimentos e a elaboração de projetos conjuntos entre moradores de comunidade tradicional da floresta e alunos e pesquisadores da Universidade.
O programa de extensão denominado Apoio à Produção Artesanal do Látex na Comunidade de Jamaraquá – Floresta Nacional do Tapajós, Pará é coordenado por Álvaro de Oliveira D’Antona, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp e pesquisador especialista em estudos de população e meio ambiente. Desde o início de 2023, o trabalho já mobilizou mais de 500 alunos de graduação e pós-graduação e um grupo de aproximadamente dez docentes de diversas áreas de pesquisa.
D’Antona desenvolve pesquisas na Amazônia há mais de 30 anos e, desta vez, o objetivo do projeto é gerar trabalho e renda associados à coleta do látex das seringueiras na comunidade tradicional de Jamaraquá, situada na Floresta Nacional do Tapajós, no município de Belterra. A aproximação da Unicamp com essa comunidade dá-se inclusive fisicamente, por meio de trabalho de campo realizado pelos acadêmicos na região e as visitas de líderes comunitários à Universidade. Nas visitas, esses líderes trazem ao meio universitário suas competências e experiências locais, estimulando ações integradas e interdisciplinares de ensino, pesquisa e extensão.
O pesquisador explica que a equipe multidisciplinar do projeto conversa com os moradores da comunidade sobre os problemas relacionados com a escala da produção do látex (ainda abaixo de seu potencial), as condições de trabalho nos seringais, as limitações do mercado e seus efeitos sobre a renda da comunidade e o papel das populações tradicionais no manejo e conservação da floresta em pé. “Nas comunidades da região da Floresta Nacional do Tapajós, a produção de borracha ocorre de forma incipiente, gerando produto com baixa qualidade e pouco valor de mercado. Jamaraquá é uma exceção nesse quadro, pois os moradores da comunidade tiveram a oportunidade, entre 2004 e 2013, de participar de outros projetos que introduziram formas de processamento da borracha de modo a agregar valor de mercado ao produto. Apesar dos avanços, no entanto, a atividade se manteve restrita e bastante abaixo de seu potencial na comunidade e na região.”
Com base no diagnóstico dos desafios a serem enfrentados e tendo definido coletivamente suas prioridades, a equipe da Unicamp propôs a adoção de instrumentos e ferramentas para melhorar as condições de trabalho e a produção. Essa equipe também atua para aproximar a comunidade de Jamaraquá de novos mercados consumidores e de fornecedores. “Temos a expectativa de que nosso trabalho trará mais resultados concretos e positivos, melhorando as condições de vida locais e estimulando ações similares em outras comunidades”, afirma o pesquisador. Para D’Antona, por meio do projeto, é possível constatar que as atividades de extensão podem ser o motor da desejada indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e também da interdisciplinaridade na academia e para além dela.
O aluno Lucas Paggiaro Pimentel, atualmente no nono semestre de Engenharia de Produção, ajudou, com seu grupo de trabalho, a elaborar uma ferramenta para corte e vinco da borracha, material usado pelos moradores da comunidade para a confecção de biojóias. Essa ferramenta facilita essa atividade, tornando-a menos desgastante. “Essa foi uma experiência de vida muito significativa, pois conheci uma realidade totalmente diferente da minha. E fiquei conhecendo mais sobre o meu próprio país. Enquanto aluno de graduação, a oportunidade de atuar em uma situação real é vital. [No tabalho de campo,] aparecem muitas dificuldades imprevistas, algo que, muitas vezes, não conseguimos vivenciar se ficarmos restritos à sala de aula. Trata-se de experiências de muito valor também quando se pensa na preparação para o mercado de trabalho”, avalia o estudante.
Outra participante do projeto é Rosenildes Guimarães, coordenadora do Instituto de Estudos Integrados Cidadão da Amazônia (Inea), professora da Secretaria de Educação do Pará e aluna de mestrado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Unicamp. Guimarães acredita que, por meio do diálogo construído atualmente entre a academia e as comunidades tradicionais, faz-se possível fomentar novos conhecimentos e contribuir para a chegada de boas mudanças tanto à comunidade acadêmica como à comunidade tradicional. “Quando venho para uma universidade que não me permite ser quem eu sou, vou começar a provocar, pois fico indignada com uma ciência que não chega até mim. Então, venho para onde existe ciência. Quero fazer ciência e levá-la para o meu povo. E também trazer meu povo para a universidade, pois nós também produzimos conhecimento relevante e válido”, afirmou. O trabalho de mestrado de Guimarães, orientado por D’Antona, intitula-se “Diálogos interdisciplinares a partir da bioeconomia da comunidade de Jamaraquá, Pará, Brasil. Efeitos da Extensão Universitária sobre o Ensino e Pesquisa na FCA Unicamp”. Veja abaixo o depoimento completo.
Tirar os alunos das salas de aula
Por meio da Resolução nº7 de 18 de dezembro de 2018, o Ministério da Educação regulamentou a incorporação da extensão aos currículos de todos os cursos de graduação do país. A formação dos estudantes do ensino superior brasileiro passou a ter, obrigatoriamente, pelo menos 10% de sua carga horária destinada ao desenvolvimento de projetos e ações junto à sociedade, fomentando assim o papel social da universidade, bem como a relevância social do ensino e da pesquisa.
Tal ênfase na extensão, segundo D’Antona, mostra-se oportuna e necessária, já que requer esforço dos docentes para modificar parte de suas disciplinas e pode colaborar para trazer maior equilíbrio à balança das missões da universidade, tradicionalmente pendente para a pesquisa. “Sem o protagonismo do ensino e sem o protagonismo da extensão, ambos orbitam a pesquisa e, consequentemente, estabelecem relações precárias entre si. Colocar a extensão no currículo não é (ou não deveria ser) levar a extensão para a sala de aula, mas, sim, retirar os alunos dali. Retirá-los fisicamente quando possível. Retirá-los sempre das situações em que se encontram, do conforto do já conhecido, apresentando-lhes outros contextos, outras situações, outras formas de ver. Contextos, situações e formas de ver que não estão na universidade.”
Além de entender a extensão como fundamental para a formação dos estudantes, o pesquisador-professor acredita que, ao envolvê-los sistematicamente em projetos do tipo, ocorre uma multiplicação de ações extensionistas, dado o expressivo engajamento estudantil nesse tipo de atividade. “Com discentes e docentes mais engajados na extensão, a instituição passa a ser forçada a encontrar meios eficientes para viabilizar as operações necessárias – e nem sempre baratas – com vistas à realização da missão da extensão. Ganha a universidade ”, afirma D’Antona.
Como o papel social da universidade é fundamental para o desenvolvimento humano, econômico e cultural de uma sociedade, quando a instituição melhora e progride, todos, na verdade, ganham. Os alunos participantes do projeto não só tiveram a oportunidade de entender as demandas dos moradores da comunidade por melhores condições de trabalho e relacioná-las com os conteúdos de sua formação acadêmica, elaborando propostas de melhoria, mas também puderam aprender como as condições de vida e a produção são indissociáveis, ampliando a compreensão sobre um modo de vida muito diferente daquele que já conhecem. O professor conta que, ao experimentarem a diferença, esses alunos foram capazes de elaborar bons projetos nas áreas da saúde (nutrição), cultura e história.
Gabriela Santos Ribeiro, estudante do sétimo semestre de Nutrição, participou de encontros presenciais e virtuais e desenvolveu um trabalho para buscar entender a realidade da produção e do consumo de alimentos pelos moradores de Jamaraquá antes e depois dos anos 2000, considerando as atividades econômicas desenvolvidas e seus impactos na saúde nutricional da população. “Como estudante de Nutrição, fez muita diferença para minha formação ter a chance de desenvolver um projeto que gera um impacto social direto. Pude perceber que, como futura profissional da área da saúde, posso desenvolver pesquisas que vão além dos laboratórios da universidade, atingindo indivíduos diretamente – essa é a importância maior de projetos como esse.”
A coordenadora do Laboratório de Ergonomia, Saúde e Trabalho, professora Sandra Gemma, também destaca a relevância do projeto, especialmente em uma faculdade de ciências aplicadas. “Os estudantes sempre salientam ver muito sentido em desenvolver projetos com pessoas que eles passam a conhecer, com quem podem interagir, quando então constatam a aplicabilidade do que desenvolvem na comunidade. Esse é um projeto de fôlego, muito importante para a Universidade.”
Conhecer, mapear, compartilhar, preservar
Como desdobramento inesperado do projeto de extensão, a equipe da Unicamp recebeu um convite da Federação da Floresta Nacional do Tapajós – entidade que representa as comunidades tradicionais situadas na unidade de conservação – para elaborar uma metodologia e um instrumento de coleta de dados que tornassem os moradores de três comunidades – Jamaraquá, Caratinga e São Domingos – protagonistas do processo de mapeamento de seus seringais. O convite foi realizado levando-se em conta a expertise do Laboratório Urbanização e Mudanças no Uso e Cobertura da Terra (l-UM, coordenado por D’Antona) na elaboração de instrumentos de coletas digitais por meio de tablets e smartphones, assim como a familiaridade da FCA em relação à área.
A realização de um inventário dos seringais era uma demanda antiga das comunidades, que possuíam expressiva produção de látex para o comércio local e nacional, mas que não sabiam dimensionar o potencial produtivo de seus seringais. E isso porque não existia um mapeamento detalhado da região – portanto, as comunidades ficavam sempre à mercê de grupos externos para realizar esse tipo de trabalho.
Com os projetos de pesquisa e extensão realizados pelo grupo da Unicamp em conjunto com os moradores da área, criou-se um aplicativo para tablets e smartphones a fim de realizar a coleta de informações sobre cada uma das seringueiras existentes na região. Agora cada morador pode agora usar seu próprio celular para realizar o trabalho.
O inventário florestal participativo contou com a atuação dos estudantes e de cerca de 50 moradores das comunidades, tendo sido mapeadas mais de 500 árvores. Os habitantes da região receberam treinamento para usar o aplicativo e o sistema de mapeamento aéreo por drone. Os jovens das comunidades também participaram da ação, permitindo um engajamento importante tendo em vista a construção de futuras lideranças locais.
Uandrea Katrine Dias Rodrigues, jovem moradora da comunidade de Maguary e estudante do ensino médio, afirma que aprendeu bastante com o treinamento e que espera ter outras oportunidades. “Queria dizer que foi um prazer fazer o curso com vocês. É difícil termos essas oportunidades. Nunca tinha visto isso acontecer aqui. Eu aprendi muito. Foi um sonho realizado poder fazer um curso diferente como esse. Minha família não tem condições de pagar por aulas extras. Eu espero que vocês voltem com outros cursos para jovens. Vou continuar pesquisando sobre mapeamento de seringais porque achei isso muito interessante.”
Os resultados do inventário e do mapeamento foram apresentados em sessões públicas realizadas na comunidade, servindo também para a comunidade ficar sabendo mais sobre o programa de extensão. É o que afirma José Diego Gobbo Alves, doutorando, integrante do l-UM e um dos principais responsáveis pelo treinamento oferecido. “As comunidades tradicionais possuem um papel fundamental para a manutenção da floresta em pé. Assim como a visita das lideranças comunitárias à Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, o trabalho de campo na floresta mostrou-se um momento de escuta ativa importante para o alinhamento entre as questões e necessidades dos moradores com os objetivos do programa de extensão. Ambos os momentos foram valiosos para o reconhecimento da importância de projetos de extensão e da abertura da universidade para a sociedade.” Veja abaixo o depoimento completo
Filhos da Amazônia
“Como pesquisadora e moradora da Amazônia, tenho toda a minha vivência. Eu sou da área rural e filha de produtor rural. Sou agricultora, sou professora. Trabalho com diversas atividades e isso faz parte da minha vida. Eu não sei só ler e escrever, eu também sei costurar, sei fazer panela de barro, sei fazer artesanato, sei apanhar açaí, sei cultivar uma roça, sei fazer farinha e biju. Nós, filhos da Amazônia, filhos do interior, seja indígena, quilombola ou ribeirinho, a gente pesca, planta, caça e cultiva. Então temos uma super habilidade que aprendemos devido à necessidade.
“Quando venho para uma universidade que não me permite ser quem eu sou, vou começar a provocar, pois fico indignada com uma ciência que não chega até mim. Então, venho para onde existe ciência. Quero fazer ciência e levá-la para o meu povo. E também trazer meu povo para a universidade, pois nós produzimos conhecimento relevante e válido. Talvez, com o diálogo que estamos construindo por meio desse projeto de extensão, possamos entender de que forma os vários conhecimentos precisam se encontrar. E, quando esses conhecimentos se encontram, eles podem gerar boas mudanças na comunidade acadêmica e na comunidade tradicional.” (Rosenildes Guimarães, coordenadora do Instituto de Estudos Integrados Cidadão da Amazônia, professora da Secretaria de Educação do Pará e aluna de mestrado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Unicamp)
Novo universo de vivências
“A participação no programa de extensão Apoio à Produção Artesanal do Látex na Comunidade de Jamaraquá – Floresta Nacional do Tapajós, Pará me possibilitou conhecer mais uma fração da colossal riqueza cultural e socioambiental que a Amazônia apresenta. Embora eu já tenha trabalhado em outras regiões da Amazônia, cada contexto traz um novo universo de vivências e encantamentos que agregam e (re)constroem as lentes através das quais vejo e sinto o mundo.
“O trabalho de campo foi uma experiência imersiva em uma região da Amazônia que vem enfrentando um intenso processo de transformação social, espacial e econômica no qual as unidades de conservação e as comunidades tradicionais possuem um papel fundamental para a manutenção da floresta em pé. Assim como a visita das lideranças comunitárias da comunidade à FCA, o trabalho de campo foi um momento de escuta ativa importante para o alinhamento entre as questões e necessidades dos moradores com os objetivos do programa de extensão. Ambos os momentos foram valiosos para o reconhecimento da importância de projetos de extensão, mas também da abertura da universidade para a sociedade.
“Trabalhar em Jamaraquá junto com os moradores da comunidade para a realização de um mapeamento participativo dos seringais, por meio do uso de tablets, smartphones e drone, trouxe vários aprendizados profissionais e experiências que contribuíram para o meu crescimento pessoal. Quanto a minha formação profissional, isso possibilitou uma abertura no horizonte intelectual, além de um desenvolvimento pessoal ao me conectar com novas pessoas, histórias e modos de viver e existir no mundo muito particulares da região.” (José Diego Gobbo Alves, doutorando e integrante do Laboratório de Urbanização e Mudanças no Uso e Cobertura da Terra)