Socióloga investiga legado e fatores que resultaram na derrocada da Pnater
Por nove anos, de 2004 a 2013, a agricultura familiar teve voz no Brasil, contemplando desde o descendente de colonos europeus no Sul e no Sudeste até os moradores das comunidades quilombolas, passando por assentados da reforma agrária, silvicultores, pescadores e extrativistas. A Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), lançada em 2004, foi singular sob diversos aspectos. As condições que a forjaram, seu legado e os fatores de sua derrocada foram investigados pela socióloga Carolina Rios Thomson, em sua pesquisa de doutorado, desenvolvida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Foi apenas no início do século XXI que o Estado promoveu uma política federal de extensão rural voltada exclusivamente para a agricultura familiar, com base na agroecologia, no ideário humanista do educador Paulo Freire e na participação da sociedade.
Orientada por Sonia Bergamasco, colaboradora do Centro de Estudos Rurais do IFCH e professora titular aposenta- da da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, a pesquisa está integrada à linha de pesquisa Processos Sociais, Identidades e Representações do Mundo Rural, do IFCH. Segundo a orientadora, a tese, intitulada “(Im)Possibilidades da extensão rural para a agri- cultura familiar: uma análise dos ciclos de Ater no Brasil”, é “um trabalho essencial, que mostra o investimento do Estado em uma política necessária, reunindo dados inéditos”. Sua importância se deve, entre outros motivos, à abrangência do público contemplado. “Embora ocupem uma menor área, agricultores familiares são atualmente 72% dos lavradores brasileiros”, justifica Bergamasco.
Como um serviço de atendimento ao agricultor, a extensão rural abrange educação não formal, como formação e capacitação em agroecologia, gestão da propriedade, acesso a mercados, certiicação de orgânicos e cooperativismo. Possibilita, também, o acesso a políticas públicas — crédito agrícola, regularização fundiária, mercados institucionais —, além de fornecer orientações técnicas relacionadas à produção agropecuária, como prescrição de receituários agronômicos, manejos produtivos, entre outras atividades.
Muitas políticas em uma
A autora do estudo ressalta que a Pnater surgiu para atender realidades diversas, já que o agricultor familiar brasileiro é todo aquele que não seja médio ou grande produtor rural. “Territórios quilombolas, por exemplo, são de domínio coletivo. Só isso já mostra que é impossível aplicar uma mesma receita para todos”, esclarece.
Complexo, o programa contava com um comitê inserido no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Agricultura Familiar (Condraf) e com conselhos responsáveis por levar as demandas de cada região ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Envolvia o lançamento de editais de projetos, feitos em conjunto com os agricultores, respeitando as características de sua realidade e seus saberes ancestrais. Entrava em cena a agroecologia e saía, portanto, o difusionismo produtivista propagado, sobretudo, no regime da ditadura militar, segundo o qual a extensão rural servia para instruir o agricultor – visto como um simplório, ignorante – a adotar práticas, técnicas, maquinários e insumos que visavam ao aumento da produção e do lucro.
Sem esse aparato, a Pnater não teria se legitimado junto à população, argumenta Bergamasco, cujas pesquisas são referência em desenvolvimento rural sustentável. “A estratégia tem de ser outra, porque a relação com a terra é diferente. O agricultor familiar vive no campo e do campo. São necessárias estratégias inteligentes para preservá-lo, porque é a herança dos seus filhos.” Por isso, defende a docente, os agricultores necessitam de uma extensão rural com projetos voltados para suas especificidades, de modo que tenham autonomia para discernir o que é bom para eles próprios.
Conjuntura rara
Ao longo da pesquisa, Thomson efetuou um resgate das políticas de assistência técnica e extensão rural (denominadas Ater) dos séculos XX e XXI. Levantou e analisou todos os 1.936 contratos federais de extensão rural coordenados pelo MDA e pela Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater); entrevistou funcionários do alto escalão do antigo MDA – incluindo o ex-ministro Miguel Rossetto – e obteve relatos confidenciais de extensionistas rurais que atuaram em fases distintas.
Partindo da interpretação da realidade brasileira feita pelo sociólogo Armando Boito, professor de Ciência Política do IFCH, e baseada na teoria do filósofo grego marxista Nicos Poulantzas, Thomson contextualiza as condições envolvidas na formação e no desmantelamento da Pnater. Assim, ela associa os diferentes ciclos de extensionismo rural dos séculos XX e XXI aos sujeitos políticos e às orientações macroeconômicas que os determinaram.
Baseada na noção de Boito de que a classe dominante brasileira é dividida em frações, a pesquisadora defende que o apoio dado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela burguesia interna — formada pelo agronegócio, a indústria e os bancos nacionais — foi resultado de uma ruptura no poder devido ao acirramento do neo-liberalismo ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Uma vez eleito, Lula transformou o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em financiador desses grandes segmentos da burguesia interna e, como contrapartida, conseguiu posicionar e fun- damentar novas políticas públicas voltadas para as classes populares, como a Pnater.
Fogo amigo
Ao definir seu objeto de estudo, Thomson partiu da hipótese de que o Partido dos Trabalhadores (PT) não tinha intenção de concretizar a Pnater como política. Essa hipótese foi rapidamente refutada. “Entrevistei pessoas intrinsecamente ligadas à construção da Pnater, que foram categóricas ao confirmar o engajamento do governo. O presidente Lula, por exemplo, negociou diretamente com o então ministro da agricultura Roberto Rodrigues, do Mapa [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], para que a extensão rural fosse exclusivamente dedicada à agricultura familiar e coordenada pelo MDA.”
Lançada em um momento em que Lula estava em alta entre a burguesia interna e os partidos políticos que compunham o governo, não demorou muito tempo para a Pnater sofrer boicotes, incluindo até mesmo investigações do Tribunal de Contas da União (TCU) e pressões do MDA. Esse fogo amigo era parte de um fenômeno macroestrutural, inerente aos Estados capitalistas. “A partir da crise de 2008, para sustentar o apoio da burguesia interna, o governo cedeu. Como se diz, num cenário de farinha pouca, o pirão vai sempre primeiro para as classes dominantes.”
A Pnater foi sendo crescentemente descaracterizada, e, em 2010, a extensão rural passou a ser subsidiária do programa Brasil sem Miséria, para garantir a frágil popularidade da presidente Dilma Rousseff. Com a retirada do PT do poder, em 2016, a política de extensão rural para a agricultura familiar foi extinta.
UM POSSÍVEL RETORNO?
Lula voltou a comandar o Executivo 20 anos depois da Pnater. Isso garantirá a retomada da política que, segundo a professora, revolucionou a agricultura familiar? Para Thomson, existe uma conjuntura favorável para esse retorno, pelo menos nos primeiros anos de governo. “Vejo que há pelo menos uma parte da burguesia interna preocupada em frear o processo de neoliberalismo ortodoxo.” O cenário, pondera, é outro. “Historicamente, as classes dominantes levam em conta o dinheiro acima de tudo. Mas, recentemente, a questão ideológica tem pesado”, argumenta.
A socióloga espera que a publicação de sua dissertação possa servir de subsídio para gestores públicos, governo e movimentos sociais ao elaborarem seus programas. Na academia e nos cursos técnicos, já há interesse, conta a autora. “Já recebemos contatos de professores. Principalmente por se tratar de um conteúdo que engloba o governo [Jair] Bolsonaro.”