Obra de Maria Eugenia Boaventura conta a história de Couto de Barros, um dos apoiadores do movimento, e traça um perfil das relações entre famílias influentes e a cultura da época
Fotografias sempre tiveram o condão de imortalizar episódios históricos. Com o Modernismo Paulista não foi diferente. Um dos célebres registros de integrantes do movimento, feito durante homenagem a Paulo Prado, estampa escritores, intelectuais, empresários e políticos. Além do homenageado, compõem a foto, tirada em 1924, figuras conhecidas do Modernismo, entre as quais Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. À esquerda, na imagem, está Antônio Carlos Couto de Barros, advogado, escritor e um dos fiéis colaboradores do movimento.
À primeira vista, a impressão que se tem é a de que Couto de Barros, absorto, está apartado dos demais; na verdade, sua figura sintetiza o papel da elite paulista na história do Modernismo. Seus representantes, mesmo nos bastidores, contribuíram de forma significativa para o movimento que almejava inovar nas artes e pensar o país que completava cem anos de independência.
A trajetória de Couto de Barros, e como esse percurso ilustra a história da elite paulista do início do século XX, é o eixo do livro Couto de Barros: A Elite nos Bastidores do Modernismo Paulista (Ateliê Editorial e Editora da Unicamp, 2022), de Maria Eugenia Boaventura, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Lançado em dois volumes, a obra esmiúça a dinâmica social da época, revisitando seus jantares, bailes e reuniões. Revela, ainda, como as articulações entre escritores, artistas, empresários e políticos viabilizaram não apenas a Semana de Arte Moderna de 1922, como também originaram publicações, escolas, organizações sociais e partidos políticos. O segundo volume, cujo subtítulo é O filósofo da malta (textos modernistas), reúne 50 artigos escritos por Couto de Barros na imprensa do período.
Pesquisadora reconhecida por seus trabalhos acerca do Modernismo Paulista e autora de obras como O Salão e a Selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade (Editora Ex Libris e Editora da Unicamp, 1995) e 22 por 22 (Edusp, 2000), Maria Eugenia põe todo seu conhecimento a serviço do leitor ao mesmo tempo em que demonstra o encantamento de quem se depara, pela primeira vez, com um rico acervo pessoal e familiar. “Eu, loucamente, me envolvo em trabalhos hercúleos como esse”, declara, com satisfação, ao relembrar sua decisão de investigar a vida do personagem. “Em todos os estudos que eu realizava, o nome de Couto de Barros aparecia. Ele estava nas cartas de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira. Era uma figura que me despertava curiosidade.”
‘Um autêntico gentleman paulista’
Antônio Carlos Couto de Barros nasceu em Campinas, em 19 de setembro de 1896. O nome foi escolhido em homenagem a Carlos Gomes, ilustre maestro campineiro, que também era Antônio e que havia falecido três dias antes, em Belém, no Pará. Foi o caçula de sete filhos do casal Adriano Júlio de Barros e Altemira Alves Couto de Barros, e neto de imigrantes portugueses, comerciantes que vieram para o Brasil no século XIX. Seu pai atuou como médico em momentos importantes da história sanitária, como as epidemias de febre amarela e de gripe espanhola. Adriano também foi industrial, criador da Companhia Paulista de Louça Esmaltada (Copale), presidente da Associação Comercial de São Paulo e vereador em Campinas.
Em 1902, a família se muda para São Paulo, local onde o jovem Couto de Barros encontra o ambiente e as companhias que o tornariam um dos expoentes de uma elite que desejava fazer da Paulicéia o berço de um Brasil moderno. Alguém que o jornalista Tavares Miranda definiria como “um autêntico gentleman paulista”. Estudou na Escola Estadual Caetano de Campos e no Colégio São Bento, onde foi colega de Oswald de Andrade.
Já nos tempos de colégio, demonstrava seu apreço pela cultura ao colaborar na revista Recreio Literário, do grêmio estudantil. O São Bento, a exemplo de outras escolas, museus, teatros e clubes, foi criado em um período no qual São Paulo se desenvolvia à medida em que as famílias cafeicultoras se transferiam para a capital. “Na época, a elite paulista morava nas fazendas e no interior. Foi um movimento por meio do qual a cidade se preparava para receber – e educar – os filhos dessa elite”, explica a professora.
Se era premente a aspiração por um país moderno, uma instituição foi decisiva para esse projeto: a Faculdade de Direito de São Paulo, que depois seria incorporada à Universidade de São Paulo (USP). Sob as arcadas do Largo de São Francisco, Couto de Barros e outros personagens, que hoje figuram nos livros de história e batizam ruas, construíram não apenas um movimento de vanguarda, mas uma nova perspectiva política, econômica e cultural, que colocava São Paulo como protagonista de um novo país. Para isso, foram criados movimentos, publicações e até partidos políticos, como são os casos da Liga Nacionalista de São Paulo e do Partido Democrático (e seu veículo de imprensa, o Diário Nacional). Além de advogarem pela modernização cultural, os movimentos se opunham de forma crítica às oligarquias da República Velha e atuaram em prol do Estado paulista nos episódios da Revolta de 1924, e da Revolução Constitucionalista de 1932.
Apesar de não produzir literatura como os amigos Mário e Oswald de Andrade, ou como os irmãos Guilherme e Tácito de Almeida, Couto de Barros compartilhava os mesmos valores modernistas e utilizava sua capacidade de transitar por diferentes grupos para trazer apoio social e financeiro ao movimento. “Pessoas como Couto de Barros são personagens que fizeram a história de São Paulo, participaram da vida política e cultural da cidade, mas foram deixadas de lado. O Modernismo tem muito desses casos. Foi feito por pessoas distantes do meio literário e artístico, que depois se tornaram diplomatas, advogados e empresários”, conta Maria Eugenia.
O apoio da elite ao Modernismo viabilizou tanto a Semana de 22 como suas manifestações posteriores, entre as quais as revistas Klaxon, que reuniu os principais nomes do movimento, e Terra Roxa e Outras Terras. Detalhes desses bastidores são recuperados por Maria Eugenia no livro, que inclui uma reprodução fac-símile de uma caderneta na qual eram anotadas as contribuições feitas por membros da elite para a publicação da Klaxon. Segundo a docente, o apoio não era restrito ao pagamento das contas. “Não foi um financiamento tão robusto. Mais relevante foi o apoio dado por algumas personalidades. Um exemplo foi a presença de Paulo Prado no Theatro Municipal e na foto com os modernistas, o que acabou se constituindo numa ajuda simbólica muito grande.”
As páginas dos jornais e revistas da época representaram espaços importantes nos quais Couto de Barros deixou sua marca como idealizador de um projeto artístico e de país. Nessas publicações, Couto alternava comentários que exaltavam o movimento com críticas ácidas às inovações propostas, escritas sob pseudônimos. Seu objetivo era promover o debate e manter os modernistas na boca ¬– e nas letras – da elite do período.
Em plena Semana de 22, Couto de Barros incorporou um personagem reacionário sob o pseudônimo de Clodomiro Santarém, escrevendo em A Gazeta um “lamento” sobre os rumos que a literatura tomaria com o Modernismo: “Devo confessar, excelentíssimo senhor, para desencargo de minha consciência de profeta, que vejo, nesse futuro próximo, a crítica literária diminuir, pouco a pouco, de volume, tomando proporções de grânulo, esfarelando-se em poeira estéril”. Já em 1926, na Terra Roxa e Outras Terras, criticou a resistência dos acadêmicos às inovações: “Na Academia Brasileira de Letras ainda domina onipotente o passadismo de sobrecasaca e botinas de elástico. O espírito moderno dentro dela se cobriria logo de bolor”.
Com o decorrer dos anos 1920 e as sucessivas derrotas de São Paulo no campo político da época, sobretudo após a Revolução de 1932, os modernistas voltam-se a uma atuação centrada na criação de espaços e instituições em que o projeto paulista de nação seria perpetuado. Assim, surgiram a Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam), em 1932, e a Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933. Nesta última, Couto de Barros teve importância central como membro de seu conselho superior e professor de história econômica. Na mesma direção, o grupo apoiou a criação da USP, em 1934, e diversas outras organizações culturais.
Enquanto sua vida pública refletiu a efervescência da época, junto à família ele encontrou mais tranquilidade e retomou os laços com a terra natal. Casou-se em 1942 com Décia Milano de Barros, foi pai de cinco filhos, estabelecendo-se na Fazenda São João, propriedade familiar no distrito de Sousas, em Campinas. Após sua morte, em 16 de maio de 1966, sua memória foi celebrada pelos companheiros em artigos como o de Guilherme de Almeida, que chama Couto de Barros de “sereno participante” do Modernismo. “Isso, precisamente isso foi ele, sempre, na vida espiritual e social do nosso meio e do nosso tempo”, escreveu o poeta em texto publicado em O Estado de S. Paulo dois dias depois da morte do amigo.
De São Paulo para São Paulo
Além de recuperar a memória de um personagem importante do Modernismo, a obra de Maria Eugenia tem o mérito de, por meio da trajetória de um de seus integrantes, ilustrar a trama de relações sociais que tornaram o movimento possível. Também evidencia a importância daquele ambiente cultural para as artes brasileiras, sem deixar de destacar que esse foi um movimento centrado na elite da época. “Eu mostro que, sim, o Modernismo Paulista foi viabilizado por uma elite cultural, social, financeira e política importante. Eram pessoas que pertenciam a esse grupo, como foi o caso de Couto de Barros, Mário de Andrade, Oswald [de Andrade], Tarsila [do Amaral]. Eram todos membros da elite paulista”, exemplifica.
Os estudos de Maria Eugenia, corroborados pela biografia de Couto de Barros, mostram que o Modernismo foi importante para o desenvolvimento do Estado como um todo e não apenas em sua esfera artística. Por São Paulo ser uma cidade que, na época, era suplantada em protagonismo pelo Rio de Janeiro, havia uma forte dependência do mecenato exercido pela elite empresarial do período. “Eram pessoas que punham a mão no bolso para desenvolver as instituições culturais”, comenta. “A elite precisa do verniz da cultura.”
Com riqueza de detalhes e valendo-se de um vasto acervo, que inclui publicações, cartas, cartões postais, folhetos e cardápios de eventos, Maria Eugenia também mostra o quanto o movimento modernista extrapolou a Semana de 1922. Para a autora, se os três dias de fevereiro foram “uma festa”, ainda cabem reflexões significativas a respeito do porquê o movimento ainda gera tanta repercussão. “Nunca vi tanta competência em um grupo para que, cem anos depois, ainda se fale da Semana de Arte Moderna. Se tivessem sido apenas aqueles três dias, não teria ocorrido muita coisa além daquilo”, brincou, entre risos.
A professora avalia que, apesar de já existir uma visão mais crítica sobre os significados da Semana, o evento, seus antecedentes e seus frutos precisam ser circunscritos a um período. “Por exemplo, as questões identitárias não estavam colocadas naquela época. Assim sendo, a Semana não teve a participação de negros e indígenas.” Segundo a intelectual, essas reflexões servem de base para pensar a forma como as artes são elaboradas, produzidas e difundidas no mundo contemporâneo.
Para além do Modernismo, a obra de Maria Eugenia traz lições sobre trabalhos que envolvem acervos valiosos e seu papel na reconstituição historiográfica. A docente conta que, para isso, o apoio da Unicamp foi essencial, assim como a confiança nela depositada pela família de Couto de Barros, que lhe deu acesso irrestrito aos itens que, agora, estão à disposição dos leitores.
“A primeira coisa que fiz foi olhar o arquivo e pensar se aquilo ‘ia dar samba’, como se diz popularmente”, revela a docente. Após um longo trabalho, o samba saiu. Questionada sobre o que mais a surpreende depois de anos pesquisando a trajetória de pessoas como Couto de Barros, a autora afirma sem rodeios: “Todos os modernistas tinham uma consciência clara do papel histórico que desempenharam para São Paulo e da importância de suas criações e acervos. Foi isso que tornou possível contar essa história”.