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O projeto “Inventário participativo como instrumento para identificação e gestão do patrimônio cultural” está ajudando a recontar histórias invisibilizadas em quatro diferentes regiões do Brasil, por meio da recuperação da memória enquanto registro. Coordenado pela docente Maria Tereza Duarte Paes, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IG), o projeto conta com a colaboração interdisciplinar de pesquisadores de diversas instituições brasileiras e estrangeiras. Um seminário realizado na Unicamp no final de outubro reuniu parte desses estudiosos, que apontaram resultados dos inventários dos quatro núcleos de pesquisa envolvidos no projeto – Tatuí (SP), Belém (PA), São Luís (MA) e Quixadá (CE). No evento, foram apresentados quatro dossiês produzidos e editados em forma de e-books e uma plataforma digital com o material obtido no projeto. Discutiram-se, ainda, as estratégias de envolvimento comunitário, de divulgação dos resultados e os caminhos futuros do trabalho.

Durante três anos, as equipes dos quatro núcleos aplicaram metodologias participativas inspiradas no Manual de Aplicação dos Inventários Participativos, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para identificar referências culturais de comunidades frequentemente marginalizadas. Segundo Paes, a relação construída com a população é de extrema importância. “São populações invisibilizadas que têm uma grande riqueza em patrimônio cultural, festas, bens e pessoas que representam heranças muito importantes.”

Núcleo Tatuí (SP)

O núcleo de Tatuí (SP) buscou inventariar, a partir da memória operária, o patrimônio industrial da Companhia de Fiação e Tecelagem São Martinho, fundada em 1881 e tombada pelo estado em 2007. A fábrica, considerada a primeira do estado de São Paulo cuja arquitetura expressa o uso industrial, está fechada desde 1994 e já não guarda máquinas nem trabalhadores, mas conserva uma memória operária profunda. Por meio de uma rede de parceiros, de buscas em documentos históricos e de oficinas e entrevistas que mobilizaram a população de Tatuí, a pesquisa revelou uma face pouco conhecida da antiga fábrica têxtil. Segundo Simone Scifoni, docente da Universidade de São Paulo (USP), a fábrica foi a principal empregadora dos moradores. “Todas as pessoas na cidade têm algum parente que trabalhou lá, então, há um vínculo muito forte com a vida do município”, comenta. “É um contexto em que a fábrica tem uma memória muito saudosista, porque é o fim do emprego na cidade.”

Equipe do grupo Tatuí: documentos históricos e oficinas
Equipe do núcleo Tatuí (SP): documentos históricos e oficinas

Ao identificar 44 referências culturais, a equipe trouxe à tona elementos esquecidos que recuperam a dimensão política e social das lutas trabalhistas que moldaram a vida de Tatuí, como o jornal operário, greves e episódios de repressão durante a ditadura. “Assim, emerge a mobilização operária de que a cidade não fala, que está escondida”, destaca. Dentre as referências, está uma tecnologia inicial importante associada à produção têxtil – a lançadeira, que hoje não é mais utilizada. “Apareceram também muitos objetos relacionados ao futebol, que tem um vínculo muito grande com o operário, como a camisa do time e o conjunto de troféus dos campeonatos, que eram do clube de fábrica”, conta a pesquisadora.

Núcleo São Luís (MA)

O foco da pesquisa em São Luís (MA) foi a região do bairro Desterro, o menor dos 11 bairros que compõem o Centro Histórico de São Luís e que abriga o núcleo fundacional da cidade, como a Igreja do Desterro e o Convento das Mercês. Os pesquisadores se concentraram em identificar laços afetivos de habitação, envolvendo moradores, trabalhadores, visitantes e frequentadores de atividades culturais. O bairro é muito rico culturalmente, com manifestações como a Escola de samba Flor do Samba, o Bumba Meu Boi (Boi de Lendas e Magias) e o Tambor de Crioula (Os Onças). “O Desterro é muito diverso. É um lugar de inspiração artística, inclusive com ateliês de poesia. Por outro lado, é muito vulnerável do ponto de vista social”, explica José Arilson Xavier, docente da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

Membros do Núcleo São Luís (MA): laços afetivos de habitação
Membros do Núcleo São Luís (MA): laços afetivos de habitação

A metodologia baseada em oficinas e caminhadas levou os pesquisadores a uma observação e uma participação intensa. Os pesquisadores identificaram 32 referências culturais no bairro, apontadas pelos moradores, abrangendo celebrações, lugares, saberes, formas de expressão e pessoas-patrimônio. “Inclusive referências que não existem mais fisicamente, mas que habitam a memória das pessoas”, destaca Arilson. As pessoas-patrimônio, consideradas patrimônio vivo, são moradores que se tornaram guardiões da memória coletiva, líderes comunitários e ativistas que sustentam a vida cultural do bairro. “Identificamos cinco pessoas-patrimônio em que a própria comunidade reconhece certa liderança. São pessoas que condensam um pouco da história do bairro na memória – não só porque sabem falar ou pelo que viveram, mas porque também assumem as dores da comunidade.”

Núcleo Belém (PA)

Em Belém, a pesquisa foi desenvolvida no Beco do Carmo e no Mercado Antigo, uma área ribeirinha, localizada no Centro Histórico da cidade, onde a população mora em casas sobre palafitas. Ali, convivem coletivos culturais, mestres tradicionais e espaços comunitários que há décadas sustentam a vida local. O desafio foi realizar um inventário cultural participativo que identificasse referências culturais e significados ligados ao patrimônio vivo da população, os quais são diferentes dos bens culturais oficiais e historicamente patrimonializados. “Essa é uma área de efervescência de políticas culturais.  Tem um bar que é referência da comunidade, é onde tudo acontece: de festas religiosas a funerais, e que hoje passa a ser um centro cultural, potencializado pelos inventários, mas também por outros projetos que existem na área”, explica Maria Goretti da Costa Tavares, docente da Universidade Federal do Pará (UFPA). Para a pesquisadora, “o projeto dos inventários vai além do objetivo do inventário em si, pois potencializa também atores que têm atividades tradicionais”.

Grupo do Núcleo Belém (PA):  referências culturais e significados ligados ao patrimônio vivo da população
Grupo do Núcleo Belém (PA): referências culturais e significados ligados ao patrimônio vivo da população

Goretti lembra que Belém é sede da COP 30 e que houve pressões urbanísticas com a preparação da cidade para receber o evento. Próximo à região do estudo haverá um parque linear que será uma área de lazer e que pode impactar diretamente a população da área. “Isso já está gerando uma pressão imobiliária, mas estamos de olho, porque sabemos que será uma pressão sobre a comunidade às margens do rio”, alerta Goretti.

Núcleo Quixadá (CE)

O Núcleo Quixadá (CE) também aplicou a metodologia da mandala das referências culturais na comunidade Cedro Novo, localizada em Quixadá (CE), que fica entre o Açude do Cedro e o monólito Pedra da Galinha Choca, ambos já tombados pelo Iphan e incluídos na lista indicativa do Brasil para a Unesco. A metodologia buscou identificar e valorizar os patrimônios e saberes locais da comunidade, que existe há quase 100 anos.

Pesquisadores Núcleo Quixadá (CE): patrimônios e saberes locais que existe há quase 100 anos
Pesquisadores Núcleo Quixadá (CE): patrimônios e saberes locais que existe há quase 100 anos

A comunidade revelou uma série de referências culturais ligadas à pesca artesanal, à construção de casas, à vida religiosa e aos modos de ocupação do território. As oficinas evidenciaram práticas e símbolos que sustentam a identidade local e reafirmam a permanência da comunidade diante de sucessivas tentativas de remoção. “Surgiram vários elementos do patrimônio não oficial, tal como o bar da Mangueira, a igreja evangélica, o modo de construir as casas. São várias referências culturais que surgiram através da aplicação do inventário participativo via mandalas”, explica Emilio Pontes, docente doInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE), campus Quixadá.De acordo com o pesquisador, ocorreram três encontros de oficinas de mandalas, sendo que uma delas foi exclusivamente feminina. “Percebemos a necessidade de estarmos mais inseridos na questão de gênero”, comenta.

Construção coletiva do conhecimento
Mandala de referências culturais no Núcleo Quixadá; cada núcleo fará reunião local para apresentação dos resultados finais do projeto
Mandala de referências culturais no Núcleo Quixadá; cada núcleo fará reunião local para apresentação dos resultados finais do projeto

Os participantes do seminário na Unicamp ressaltaram a importância de um projeto dessa envergadura. “É muito importante essa troca, para vermos nossas diferenças e onde nos complementamos”, afirma Paes. Já de acordo com Pontes, esta é uma “oportunidade quase única de contato com tantos pesquisadores renomados da geografia brasileira e de outras instituições presentes nesse projeto; sobretudo a possibilidade de alunos e alunas, bolsistas e membros voluntários [participarem] é um bônus incrível. O ganho principal é esses estudantes terem a oportunidade de conhecer, intercambiar, fazer projetos”. Scifoni, por sua vez, afirma que a participação foi enriquecedora pela diversidade de profissionais envolvidos, tais como geógrafos, sociólogos, arquitetos e historiadores. “Acho importante essa ideia de um trabalho coletivo em que se constrói o conhecimento de maneira colaborativa”, disse.

O encerramento formal do projeto ocorrerá em fevereiro de 2026. Até lá, os núcleos terão reuniões locais.  “Cada núcleo vai fazer um evento para apresentar os resultados para as comunidades”, afirma Paes. Segundo a docente da Unicamp, haverá exposições de banners, de fotografias, de material audiovisual, além da disponibilização de um material com linguagem menos acadêmica para as comunidades envolvidas. Além da devolutiva para as comunidades, o grupo de pesquisadores deve enviar para o IPHAN o Termo de Referência proposto pela equipe, de modo a democratizar o acesso aos resultados ao público em geral e fomentar a realização de inventários participativos sobre outros patrimônios culturais materiais e imateriais no país.

Foto de capa:

Fábrica São Martinho em Tatuí; encerramento formal do projeto acontecerá em fevereiro de 2026
Fábrica São Martinho em Tatuí; encerramento formal do projeto acontecerá em fevereiro de 2026

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