A cultura e os saberes negros, tanto os produzidos na academia como os de origem popular e ancestral, nortearam um dos principais destaques da programação do UnicampAfro no último dia 14. O evento denominado [UnicampAfro] Excelência Preta – (Com) Ciência e Arte, realizado no Centro de Convenções, reuniu durante todo o dia, estudantes, pesquisadores, artistas e representantes do movimento negro e de espaços de preservação das tradições afro-brasileiras para compartilhar conhecimentos e discutir o papel das artes e ciências negras para enegrecer as universidades. Além das conversas, o encontro contou com as performances Dança da Alegria, da artista e ativista Andrea Mendes, e Ave Sapiens dos Mangues, com Gina Aguilar e Nilvanda Rodrigues.
O UnicampAfro é uma iniciativa da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial (Cader) e da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Universidade lançada em 2019 para promover a equidade e a inclusão na instituição. Abordando racismo, discriminação e estratégias de enfrentamento e cuidado, o evento, com o passar do tempo, se tornou um espaço de trocas e aprendizado, promovendo debates, palestras, oficinas e atividades culturais. A programação prossegue no dia 27 (quarta-feira), a partir do meio-dia, no Teatro de Arena com o Festival Artístico e Cultural Excelência Preta – (Com) Ciência e Arte.
Confira a programação completa.
Neste sexto ano de sua realização, o encontro não apenas se ampliou, tendo início em agosto, como também conquistou o status de programa de educação antirracista. Para o professor Antonio José de Almeida Meirelles, reitor da Unicamp, o crescimento do UnicampAfro reflete os avanços da Universidade rumo a se tornar uma instituição mais inclusiva, processo iniciado com a aprovação, em 2017, das cotas étnico-raciais. “A maior presença de estudantes pretos e pardos, juntamente com o ingresso mais recentemente de estudantes indígenas, contribui para que a população universitária reflita cada vez mais o que é a população do Brasil. Ao mesmo tempo, isso traz para a Universidade temáticas de ensino, pesquisa e extensão mais próximas daquilo que a população demanda, ou seja, das suas necessidades, que muitas vezes não estavam sendo abordadas pela academia.”
Excelência Preta
Ao longo do dia 14, ocorreram conversas temáticas, denominadas Papo Preto, com a participação de convidados de diferentes perfis. Estiveram presentes a pedagoga Iêda Leal, ex-secretária de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e Renata Luz, ambas militantes do Movimento Negro Unificado (MNU); a psicóloga Jaqueline Gomes, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); o filósofo Marcelo Zig, fundador do Coletivo de Pessoas Pretas com Deficiência – Quilombo PcD e criador do AfroDef; a doutora Alessandra Ribeiro, mestra da Comunidade Jongo Dito Ribeiro e gestora da Casa de Cultura Fazenda Roseira; o instrumentista TC Silva, fundador da Casa de Cultura Tainã; o dramaturgo Marcos Brytto, fundador da Casa Aquarela; e a economista e ativista Luci Chrispim.
A organização ficou a cargo da coordenadora da Cader, professora Débora Santos, que descreveu o trabalho coletivo envolvido na concepção do encontro como um esforço para enfrentar o racismo, os apagamentos e as violências produzidos cotidianamente, a partir da celebração e da partilha do saber e da cultura negros. “Fazemos isso celebrando e partilhando o saber e a cultura negros, falando da ciência preta na universidade e fora dela, para negros e não negros.” Segundo a docente, a promoção de diálogos com os territórios externos à Unicamp serve para o aprendizado conjunto sobre estratégias de enfrentamento, resistência e cuidado. “Este é o momento de compartilharmos essa ciência produzida lá fora, resgatando o espírito de Sankofa, que, nas palavras de Abdias Nascimento, ensina a retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.”
O programa envolveu a participação de diversos órgãos da Unicamp, destacando-se o Grupo Gestor de Benefícios Sociais (GGBS) e a Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp). E também contou com parcerias representativas da comunidade negra externa, como o Núcleo de Consciência Negra (NCN), o Movimento Negro Unificado de Campinas (MNU-Campinas), a Fazenda Roseira, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro, a Casa de Cultura Tainã e a Casa Aquarela.
Papos pretos
O tema do primeiro Papo Preto do dia foi “Racismo Institucional e a Interseccionalidade”, tema esse abordado em uma mesa que contou com Gomes, com o enfermeiro Bruno Pereira, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), e com a mestra em saúde coletiva Aparecida Campos, assistente social do Hospital Dia HIV/Aids da Unicamp. Conduzida pela psicóloga, a mesa destacou o desafio da efetivação da interseccionalidade, seja como princípio, seja como prática, nas políticas institucionais, sociais e públicas no Brasil. “E não apenas para atender a um conceito que está na moda”, frisou Gomes. Já a assistente social traçou um paralelo entre a intersecção e a sobreposição de várias modalidades de opressão, algo característico, sobretudo, da vida de mulheres negras.
No Brasil, a presença de pessoas negras nas universidades, historicamente, viu-se reduzida devido a diversas barreiras sociais, econômicas e institucionais. O esforço recente para diminuir as desigualdades, como a adoção de políticas de ação afirmativa, serviu de pano de fundo para a segunda mesa de discussões: “Como Enegrecer a Universidade”. Trazendo reflexões das professoras Santiago e Chrispim, mediadas pela militante Luz, a conversa lembrou a importância da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileiras com o intuito de interromper esse histórico de apagamento.
Lembrando que a lei originou-se das articulações de movimentos negros fundados no século passado, Chrispim destacou a relação entre o surgimento desses movimentos e a defesa da vida negra no país. “Seu nascedouro esteve e está sempre atrelado com a luta contra o genocídio da população negra. Foi o caso recente do Vidas Negras Importam, por exemplo”, disse a economista, que enfatizou a importância de uma educação não eurocêntrica, desvinculada do referencial do homem branco acrítico, para enegrecer os espaços de aprendizado e pesquisa. “Nós precisávamos contar a nossa história e nos inserirmos na história para construir outras epistemologias, do nosso berço e da nossa ancestralidade”, defendeu. O estudo da obra de pensadores negros brasileiros, acredita a militante, mostra-se fundamental para que esse processo de enegrecimento do ensino se concretize.
Para a professora Santiago, a importância do ensino, já na infância, sobre os mecanismos para garantir a cidadania e a igualdade de direitos é importante para romper com os estereótipos e preconceitos incutidos nas crianças. A médica observou, ainda, ser preciso dar atenção para as condições sob as quais os alunos pretos e pardos ingressam nas universidades, assim como as condições de sua permanência dentro dos campi. “Esses são elementos estratégicos para que a política aconteça”, frisou a diretora da DeDH, alertando para a necessidade de reconhecer o racismo estrutural e de enfrentá-lo e miná-lo, na instituição. “O que acontece conosco, na sociedade, continua acontecendo quando estamos aqui. E, para nos fortalecermos, precisamos combatê-lo. Isso passa pelo cuidado com a saúde, principalmente a saúde mental, pois aparece muito sofrimento aqui. Essa é uma preocupação”, afirmou.
A docente ainda refletiu sobre o risco de as universidades estarem, ao longo do processo de formação de estudantes negros, provocando um “embranquecimento” desses indivíduos. “É preciso cuidado para não destruir a cultura e tudo o que o jovem negro traz para cá. Entender isso como um tesouro, uma riqueza cultural”, adverte. “Não basta, portanto, receber o aluno negro para empretecer a universidade. Precisamos estar aqui, mas precisamos ser respeitados como pessoas que têm cultura, têm história. Daí a importância de políticas também dirigidas para as comunidades de onde viemos. Não podemos estragar essa oportunidade formando pessoas negras como brancas, mas sim pessoas que estejam compromissadas com suas comunidades.”
O aquilombamento – articulação coletiva que compreende desde o movimento de resistir às tentativas de captura da branquitude até atitudes de cuidado e de socialização que visem fortalecer a cultura, a ancestralidade e a negritude dos indivíduos – foi outra medida sugerida como mecanismo para promover o enegrecimento da Universidade. “Essa junção, esse convívio, revela-se muito protetor, mas tem de ser crítico e tem de olhar para fora. Tem de aceitar os desconfortos que é estar em uma instituição branca”, finalizou Santiago.
Educação Antirracista
O diálogo recomeçou no período da tarde, com a mesa intitulada “Educação Antirracista: O que os Territórios Têm para Ensinar”, na qual Silva, Ribeiro e Brytto, representantes de espaços de preservação da cultura e dos saberes afro-brasileiros na cidade de Campinas, compartilharam as experiências de seus espaços. Essa mesa contou, ainda, com a participação de Leal, que além de militante do movimento negro é pedagoga, e com a mediação da artista visual Andrea Mendes.
Abrindo esse terceiro Papo Preto, Brytto apresentou diferentes iniciativas de um trabalho diversificado, realizado pela Casa Aquarela para contribuir com a formação de crianças e jovens da região sudoeste da cidade. O Programa da Criança, fruto de uma parceria com a Petrobras, é um desses trabalhos. Visando promover a educação antirracista, o programa utiliza a arte como opção a aulas de reforço escolar. “Percebemos que o contato com a arte interferiu positivamente na parte cognitiva de crianças que tinham um nível baixo de concentração, pouco hábito de estudo e dificuldade para lidar com regras. Essas crianças incrementaram sua qualidade de vida e seu desenvolvimento cognitivo a partir da arte.”
Entre outras iniciativas da Casa Aquarela, Brytto destacou a criação do primeiro curso de pós-graduação de matriz africana reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC), em uma parceria com Ribeiro, da Casa de Cultura Fazenda Roseira. Em sua fala, aberta e encerrada com música, a mestre jongueira ressaltou a importância do resgate e da transmissão de conhecimentos e tradições ancestrais realizados pelas comunidades negras de Campinas para o desenvolvimento do espaço que coordena. “Dentro da Casa de Cultura Tainã, eu tive a oportunidade de me reencontrar com a minha ancestralidade jongueira”, afirmou.
Ribeiro ainda apontou, como contribuição para a educação e a produção científica, o olhar multidisciplinar em relação ao mundo, algo característico da tradição dos povos africanos escravizados no Brasil. “É muito comum nos olharem para fazer pesquisa, mas não nos ouvirem para sermos episteme de uma sociedade melhor. Talvez, se nós fôssemos ouvidos nesse lugar de respeito, não teríamos tantas crises climáticas como estamos vivendo agora. Talvez não houvesse tanta fome, porque aprendemos na nossa ancestralidade que é junto, de fato, que a gente transforma. Quem separou, quem dividiu, quem estragou a terra e o rio, com certeza, não foram nossos povos ancestrais, mas aqueles povos que sempre roubaram os nossos saberes para colocar dentro de vidros e rótulos e poder dizer, então, que isso é científico.”
Em sua participação, TC Silva advertiu que a educação não está funcionando, afinal, até o momento não reduziu a desigualdade nem tampouco acabou com o ódio e a violência no mundo. Portanto, é preciso encontrar uma nova alternativa, acredita o músico. “Somos herdeiros de uma ancestralidade que propunha a cura para o mundo e que pensava o existir na dimensão do compartilhar nossa terra, nossa casa, nossa comida, nossas crianças e nossos sonhos. Sakova ensina, não educa. A educação não vem de nós, nós somos da tradição, dos ensinamentos, da escuta, da observação e do aprendizado constante”, sublinhou.
A necessidade de ensinar a sociedade a lutar contra o racismo, para Leal, que também trabalha como professora, mostra-se fundamental para avançar nas questões da área da educação. “Se dissermos para todos o que é o racismo, vamos ter mais aliados, porque esse não é um problema do negro, é um problema da sociedade que o branco criou”, pontuou a militante do MNU, citando ainda a importância de lutar por políticas públicas de igualdade racial em todas as áreas. “Não há nenhuma pauta neste país na qual não se deva ter que incluir a questão racial. Economia, moradia, lazer, saúde, educação: todas. Mesmo porque nós somos 60% da população. O Brasil deve isso a nós e vai pagar, porque é isso que o Estado democrático faz. Então, precisamos lutar por democracia, para ter representatividade, para eleger mais pessoas negras, mais indígenas, mais mulheres, mais LGBTQIA+. Nós não queremos o Brasil só pra nós. Queremos o Brasil para todos.”
Na última mesa do dia, Zig trouxe um tema pouco discutido dentro e fora da academia, apesar de sua gravidade: a realidade, no país, das pessoas negras com deficiência. Os negros compõem a maioria da população brasileira com deficiência, revelou o filósofo. No entanto apenas uma pequena parte desse grupo nasceu assim – a maioria é de vítimas de acidente, atos de violência ou doenças. “Qual é a continuidade da vida e da existência dessa pessoa? Onde ela está? O que ocorre, por exemplo, com as mulheres negras e suas crianças, quando se tornam pessoas com deficiência diante da violência obstétrica e racista ainda praticada no nosso país? Será que é coincidência as pessoas negras serem maioria entre as pessoas com deficiência no Brasil?”, provocou o presidente do coletivo Quilombo PCD.
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Confira vídeo produzido com Iêda Leal e Luci Crispim:
Confira vídeo produzido com a psicóloga Jaqueline Gomes:
Confira vídeo produzido com o filósofo Marcelo Zig: