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Esta é uma fotografia em preto e branco que retrata um homem de meia-idade a idoso, com uma barba cheia, bigode e óculos de armação escura. Ele está calvo no topo da cabeça, com cabelo dos lados. O homem está agachado ou sentado, olhando diretamente para a câmera com uma expressão séria e contemplativa. Ele veste uma jaqueta com zíper e, ao seu redor, há uma obra de arte abstrata com formas geométricas ousadas, como listras grossas, círculos vazados e outras figuras em preto, branco e tons de cinza.
O artista Rubem Valentim e algumas de suas obras abaixo: escolha por produção abstrata reflete estratégia de distanciamento da representação de uma “Bahia anedótica”

Modernismo baiano e a invisibilidade dos artistas negros

Historiador revela como o mito da democracia racial sustentou exclusões simbólicas e materiais no meio artístico

Modernismo baiano e a invisibilidade dos artistas negros

Historiador revela como o mito da democracia racial sustentou exclusões simbólicas e materiais no meio artístico

Esta é uma fotografia em preto e branco que retrata um homem de meia-idade a idoso, com uma barba cheia, bigode e óculos de armação escura. Ele está calvo no topo da cabeça, com cabelo dos lados. O homem está agachado ou sentado, olhando diretamente para a câmera com uma expressão séria e contemplativa. Ele veste uma jaqueta com zíper e, ao seu redor, há uma obra de arte abstrata com formas geométricas ousadas, como listras grossas, círculos vazados e outras figuras em preto, branco e tons de cinza.
O artista Rubem Valentin e algumas de suas obras abaixo: escolha por produção abstrata reflete estratégia de distanciamento da representação de uma “Bahia anedótica”

Em meados da década de 1940, o jovem pintor Rubem Valentim voltou para casa em Salvador após mais um dia de trabalho como dentista. Em seu diário, registrou um gesto extremo: destruiu pincéis, tintas e cavalete. Segundo o relato, sentia-se sufocado pela impossibilidade de ser reconhecido como artista em um ambiente que, embora exaltasse a negritude como símbolo cultural, fechava as portas para criadores negros.

Essa cena, preservada em seus diários da juventude, sintetiza as contradições que atravessaram a vida de uma geração de artistas negros baianos. Ao mesmo tempo em que sua arte era celebrada de maneira condescendente como expressão da autenticidade popular, suas ambições como intelectuais e inovadores eram sistematicamente diminuídas.

Foi para reconstruir esses caminhos que o historiador Bruno Pinheiro dedicou os últimos anos a uma pesquisa minuciosa sobre o modernismo negro na Bahia entre 1947 e 1964. Sua tese de doutorado, defendida no programa de pós-graduação em História, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação da professora Silvana Rubino, venceu o Prêmio Capes de Teses 2025.

“Minha expectativa era que esses sujeitos fossem tratados pela história como seres humanos plenos, com contradições, dores e conquistas. Quis compreender os limites e as possibilidades de suas trajetórias”, explica Pinheiro.

A pesquisa o levou para o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, onde hoje faz seu pós-doutorado.

Esta imagem é dividida em duas fotografias, uma ao lado da outra. Na foto da esquerda, um homem de meia-idade com barba e cabelos escuros e grisalhos olha para cima e para o lado, com uma expressão serena. Ele veste um blazer cinza sobre uma camisa branca, e o fundo parece ser uma área externa e urbana, que está desfocada. Na foto da direita, uma mulher mais velha, de cabelos grisalhos e curtos, sorri diretamente para a câmera. Ela usa uma blusa cinza de gola alta e um colar grande de design moderno com peças metálicas. Atrás dela, há uma estante branca cheia de livros.
O autor da tese, Bruno Pinheiro, e a professora Silvana Rubino, orientadora do estudo: pesquisa amplia narrativas sobre a arte moderna

Democracia racial?

A Bahia foi, ao longo do século XX, constantemente apresentada como um exemplo de convivência harmoniosa entre negros e brancos. Intelectuais, jornalistas e autoridades projetavam a imagem de um “berço da mestiçagem”, um lugar onde as tensões raciais se diluíam na música, na culinária e nas festas religiosas.

Esse discurso, entretanto, escondia exclusões concretas no sistema da arte, segundo o pesquisador. A produção de artistas negros era frequentemente enquadrada, sendo lida como “primitiva” ou “popular”, implicando em “limitações de acesso a determinados setores do mercado e possíveis constrangimentos sociais”. Isso fazia com que esses artistas fossem tomados como inspiração para a experiência de artistas brancos, enquanto a autoria individual negra era desvalorizada.

A narrativa, fortemente influenciada pela obra do sociólogo Gilberto Freyre, que exaltava a miscigenação como virtude, consolidou-se como uma marca identitária do estado. Mas, como o historiador mostra, tratava-se do mito da democracia racial: uma construção ideológica que mascarava desigualdades profundas e funcionava como obstáculo para o reconhecimento de artistas negros como protagonistas da modernidade.

“Um texto da socióloga Luiza Bairros, de 1988, foi fundamental para minha pesquisa”, relata Pinheiro. “Ela mostrava como o fator racial determinava as oportunidades no mercado de trabalho em Salvador. Embora não tratasse da arte, esse diagnóstico foi essencial para entender a cena artística que eu investigava.”

Em “Pecados no ‘paraíso racial’: o negro na força de trabalho da Bahia”, a socióloga observou e analisou como os anúncios de emprego do início da década de 1960 explicitavam a preferência naturalizada por pessoas de “cor branca”. Com o tempo, essa discriminação explícita foi substituída pela expressão “de boa aparência” – um subterfúgio linguístico que perpetuava a exclusão de pessoas negras do mercado de trabalho profissionalizado. Segundo o pesquisador, esse padrão de discriminação também se reflete na participação de artistas negros em exposições nos circuitos artísticos local, nacional e internacional.

Esta imagem apresenta três pinturas dispostas lado a lado, cada uma em uma moldura de madeira. As obras compartilham um estilo de arte abstrata e geométrica, com forte simetria e o uso de cores vibrantes e terrosas, como azul, vermelho, ocre e marrom. As composições são formadas por formas ousadas e bem definidas — como círculos, triângulos e listras — que se organizam de maneira a criar figuras que lembram totens ou símbolos. Embora cada pintura tenha um arranjo único de formas, elas formam um conjunto coeso e harmonioso.

Artistas, exclusão e estratégia

Na crítica de arte e nos jornais da época, artistas negros eram frequentemente enquadrados em categorias que os afastavam do estatuto de modernistas. “Autodidata”, “ingênuo”, “primitivo”, “folclórico”, “artista popular” eram termos usados para se referir às suas obras e, aparentemente, de maneira elogiosa, ao mesmo tempo que representavam marcados de barreiras simbólicas.

“A arte negra era aceita desde que confinada ao lugar do exótico ou do popular”, analisa o historiador. “Esses qualificativos não eram neutros; eram instrumentos de hierarquização racial dentro do campo artístico.”

Entre os artistas estudados na tese, Rubem Valentim é o que melhor documentou a si mesmo. De acordo com Pinheiro, seus diários revelam tanto a angústia quanto a estratégia. O episódio em que destruiu seus instrumentos de trabalho mostra o peso psicológico das barreiras impostas pelo racismo. Mas a decisão de organizar um instituto para gerir sua memória demonstra consciência crítica e desejo de controlar sua narrativa.

Ele enxergava a carreira artística como um espaço reservado a perfis de raça e classe distintos do seu. Para o historiador, a escolha de Valentim por uma produção abstrata não era apenas estética, mas uma estratégia para se distanciar da figuração ligada a uma “Bahia anedótica” que refletia a democracia racial.

Já a trajetória do escultor Agnaldo Manuel dos Santos ilustra as negociações necessárias para a sobrevivência profissional. Ele era assistente de Mário Cravo Júnior, escultor branco associado à elite baiana, e morava no ateliê onde trabalhava. Conseguia fazer suas esculturas apenas nas horas vagas.

“Sua participação na 4ª Bienal de São Paulo, em 1957, mudou sua vida”, conta Pinheiro. Documentos preservados no arquivo da Bienal revelam que ele perdeu o prazo de inscrição por falta de apoio dos colegas e pediu autorização para se inscrever fora do prazo. A instituição aceitou e, ao final da exposição, outras correspondências mostram o escultor negociando o retorno das obras, pois havia a possibilidade de um colecionador paulista adquiri-las.

Aquela venda representou muito mais que reconhecimento artístico: era a chance de transformar concretamente sua vida. Ele deixou de morar no trabalho, se dedicou exclusivamente à arte e se casou. “É muito interessante que essas correspondências sejam muito diretamente ligadas à sua vida profissional e como as mudanças na sua vida profissional permitiram transformações na sua vida pessoal naquele momento”, observa.

Outro caso emblemático, em nível nacional, é o de Heitor dos Prazeres, sambista e pintor no Rio de Janeiro. Em 1951, sua tela Moenda recebeu prêmio na 1ª Bienal de São Paulo, marco da arte moderna brasileira. No entanto, o feito foi silenciado pela imprensa da época e, posteriormente, pela memória institucional da Bienal.

“Esse episódio é ensinado nos cursos de história da arte, mas a presença e a premiação de Heitor foram apagadas dos registros oficiais. A análise desse silêncio é um dos pontos originais da minha tese”, explica o historiador.

Heitor adotou uma estratégia particular: assumiu-se como artista popular, dialogando com a cultura do samba e do cotidiano negro urbano. Essa identidade, embora o mantivesse em certa marginalidade, explica o pesquisador, permitiu-lhe circular em diferentes espaços e alcançar projeção internacional.

Esta é uma fotografia impactante em preto e branco, tirada de um ângulo baixo. A imagem mostra um homem negro, com um bigode fino, vestindo uma camisa clara de mangas dobradas. Ele carrega uma grande e pesada escultura de madeira em seu ombro, segurando-a com as duas mãos. A escultura representa uma figura ou rosto estilizado com as mãos sobre a boca. O homem olha para cima e para o lado, com uma expressão séria e determinada. O fundo é um céu com nuvens, o que confere à cena uma sensação de força e monumentalidade.
O escultor Agnaldo dos Santos: assistente de um artista branco, conseguia trabalhar em suas obras apenas nas horas vagas
Esta é uma fotografia impactante em preto e branco, tirada de um ângulo baixo. A imagem mostra um homem negro, com um bigode fino, vestindo uma camisa clara de mangas dobradas. Ele carrega uma grande e pesada escultura de madeira em seu ombro, segurando-a com as duas mãos. A escultura representa uma figura ou rosto estilizado com as mãos sobre a boca. O homem olha para cima e para o lado, com uma expressão séria e determinada. O fundo é um céu com nuvens, o que confere à cena uma sensação de força e monumentalidade.
O escultor Agnaldo dos Santos: assistente de um artista branco, conseguia trabalhar em suas obras apenas nas horas vagas

Sobrevivência na inventividade

Para Pinheiro, a resistência dos artistas estudados era produzida a partir de muita inventividade. Esse é um ponto central em sua tese. Segundo o pesquisador, todos esses sujeitos foram profundamente criativos ao pensar a si mesmos em um mundo em profunda transformação e refletiam sobre as próprias identidades enquanto artistas a partir de uma autoafirmação de força criativa individual muito grande. “Não consigo conectá-los a partir de uma subjetividade em comum”, explica. Apesar de experienciarem situações semelhantes em alguma medida, as soluções encontradas por cada um eram muito diversas.

“Eu acho que esse é um ponto muito interessante da tese que também me marcou desde o começo: o quanto a experiência desses sujeitos nos fala de uma profunda diversidade da experiência negra”, afirma.

A orientadora do estudo observa: “Ser artista é também profissão. Exige rede de contatos, condições materiais, reconhecimento. Muitos desses homens precisaram trabalhar em ocupações subalternas para sobreviver, e essa consciência das estruturas sociais foi fundamental para que encontrassem brechas e criassem caminhos próprios”.

Para enfrentar esses silêncios e reduções, Pinheiro recorreu a uma base teórica. Além de Luiza Bairros, dialogou com Lélia Gonzalez e sua noção de “amefricanidade”, com Cida Bento e a ideia de “pacto narcísico da branquitude”, e com o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, que analisou como o poder atua nos processos de produção do silêncio histórico.

“Essas autoras e autores ajudam a perceber que não estamos diante de meras lacunas documentais. Há uma intencionalidade nos apagamentos. Os arquivos falam pelo que mostram e, sobretudo, pelo que escondem”, elucida.

Reconstruir as trajetórias dos artistas exigiu lidar com documentos dispersos e com os silêncios intencionais. O pesquisador recorreu a acervos de jornais, correspondências, entrevistas com familiares em diferentes arquivos e museus no Brasil e nos Estados Unidos. No Centro de Pesquisa e Documentação do Museu de Artes de São Paulo, acessou o Fundo Rubem Valentim, que contém cerca de 24 mil documentos doados pelo instituto que leva seu nome . “Era como montar um quebra-cabeça em que várias peças foram retiradas deliberadamente”, relembra.

Embora se concentre entre os anos de 1940 a 1960, a pesquisa ressoa hoje, segundo membros da banca de doutorado. Orientadora e orientando relembram que, durante a defesa, o professor do departamento de Teoria e História da Arte, Marcelo Campos, que também é curador do Museu de Arte do Rio de Janeiro, destacou semelhanças com os desafios enfrentados por jovens artistas negros contemporâneos.

“Não faço essa ponte na tese, seria outra pesquisa. Mas é claro que há ecos. Hoje vemos frutos das ações afirmativas e a entrada de profissionais negros no mercado, mas ainda persistem mecanismos de exclusão. A diferença é que agora temos ferramentas críticas mais robustas para nomear esses obstáculos”, observa o pesquisador.

Ex-aluno do curso de Midialogia da Unicamp e mestre em Estética e História da Arte pela USP, seu trabalho como pesquisador na temática da presença negra na comunicação e nas artes comprova os desdobramentos práticos nos dias de hoje: Pinheiro ministrou curso na Bienal de São Paulo e contribuiu para o livro sobre a história institucional da mostra paulistana, incorporando ao registro oficial análises que antes estavam ausentes.

RELEVÂNCIA E RECONHECIMENTO

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