Damares evoca a família para ofensiva antigênero
Pesquisa analisa as diferenças entre o discurso e a prática na gestão da ministra dos Direitos Humanos de Bolsonaro
Durante o governo Jair Bolsonaro, em uma manobra conduzida pela ministra Damares Alves para fundamentar uma política antigênero, os direitos humanos sofreram uma guinada à direita. Uma política antigênero calcada na centralidade conferida a uma noção específica de família. Sob a liderança da pastora, o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos investiu na construção e na disseminação de novas narrativas para ressignificar um esforço tradicionalmente alinhado com políticas progressistas. Em uma pesquisa de doutorado realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a cientista social Paula Bortolin acompanhou esse processo, analisando as diferenças entre a política social e o discurso adotados pelo antigo governo.
Na tese “A Família do Governo Bolsonaro: Direitos humanos, política antigênero e a moralidade de todos”, a pesquisadora examina a reformulação de um campo que havia ampliado seu escopo desde o início deste século para atender a pautas relacionadas à questões de gênero, do controle de corpos e da diversidade sexual – questões contrárias, portanto, aos interesses da extrema direita.
“Os direitos humanos não são um campo neutro ou estático. Eles estão constantemente sendo disputados por grupos ideológicos. Diversos atores rivalizam pelos conteúdos que vão organizar seus sentidos, e é possível perceber sua moldagem de acordo com determinados interesses e contextos sociais”, resume Bortolin. Seu estudo começou logo após a instituição do ministério, em 2019, e transcorreu no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH, integrando uma linha de pesquisa sobre as conexões entre religião e política na conjuntura brasileira contemporânea.
A fim de investigar a forma como um certo conceito de família viu-se mobilizado para redirecionar a política social, Bortolin mapeou os conteúdos publicados no perfil oficial mantido pelo órgão federal na rede então conhecida como Twitter (hoje denominada X), nos quatro anos de mandato de Bolsonaro. A pesquisadora coletou e analisou as postagens feitas nessa rede social, concentrando-se nos conteúdos sobre políticas públicas, ações e eventos promovidos pelo órgão, além de declarações de Alves e de seus secretários.
Parte do trabalho desenvolveu-se na França, graças ao apoio do programa Transformações da Laicidade: Novas Relações entre Estado, Sociedade e Religião – uma iniciativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (Cofecub, na sigla em francês).
“O estudo da Paula contempla a centralidade do tema da família no governo Bolsonaro. Trata-se de um belo lugar desde o qual observar o panorama, pois envolve atores políticos religiosos, dos quais muitos são extremistas. Há ainda uma característica comparativa, na sua pesquisa, sobretudo no que diz respeito à extrema direita e à sua conexão com a religião, algo que vem crescendo na última década”, diz o professor do IFCH Ronaldo Almeida, que orientou o doutorado.
Estratégia inovadora
Bortolin lembra que os evangélicos não foram os únicos protagonistas da ascensão do conservadorismo no Brasil, afinal, os católicos já estavam extremamente preocupados com questões como as do direito à vida e do aborto. No entanto, somente após a ascensão de Bolsonaro, surgiu no país a conjuntura favorável para a implementação de uma política federal antigênero. Devido a suas posições a respeito da sexualidade, da regulação de corpos e dos vínculos familiares, a atuação evangélica nesse cenário ganhou destaque na tese.
Conhecida até então por uma trajetória religiosa pautada em um discurso radical, Damares atuou, dentro no ministério, implementando uma estratégia inovadora, definida pelo redirecionamento do foco da pasta. Um posicionamento contrário, inclusive, ao discurso do presidente, segundo o qual o campo dos direitos humanos servia para proteger bandidos e presidiários.
“Como ministra, Damares Alves diz que [o ministério] não é contra nada, pelo contrário. Eles estão ali para garantir os direitos humanos para todos. [Alves] enfatizou que não tentaria restringir os direitos da população LGBTQIAPN+, afirmando o compromisso em mantê-los. Contudo, ao priorizar políticas voltadas para fortalecer os vínculos familiares, os direitos individuais daquela comunidade ficaram em segundo plano.” Se na fala a política evangélica prometeu inclusão, na prática, evidenciou o estudo, houve um esvaziamento das políticas de gênero e também daquelas voltadas para a comunidade LGBTQIAPN+.
Com uma produção abundante de conteúdo sobre os direitos da criança, do adolescente e da mulher, os tweets analisados evidenciaram o desaparecimento quase total da palavra gênero: foi mencionada apenas três vezes. Já o termo família permeou todos os outros assuntos, aparecendo de maneira disseminada e sinalizando a importância da ideia de fortalecer certos vínculos familiares para nortear as políticas do ministério. “Damares fez a transversalidade do tema. Ela circulava e levou a questão para o Ministério do Turismo, para a Capes, para a área da educação”, afirma Almeida.
Ao instituir a família como responsável por gerir os problemas e as demandas sociais de seus integrantes, a pasta construiu uma narrativa que serviu para justificar a inclusão e a priorização da categoria nas políticas de direitos humanos. O discurso identificado por Bortolin instituiu o fortalecimento de certos laços familiares como solução para desafios tão diversos quanto o abuso de drogas, a automutilação infantil e juvenil, a violência contra idosos e as desigualdades impostas às mulheres no trabalho e na política. Um núcleo familiar tradicional em equilíbrio e harmonia, segundo essa lógica, conseguiria responder às necessidades de seus membros e teria autonomia para se autogerir. “Essa política reproduz uma ideia de mulher centrada no cuidado, reforçando desigualdades de gêneros.”
Segundo a análise da pesquisadora, a mensagem pretendia reduzir o peso de fatores externos sobre assuntos que, de acordo com esse bloco político, poderiam oferecer risco à instituição familiar – como, por exemplo, a educação sexual. Por outro lado, ao enfraquecer a atuação do Estado, a política do ministério atendeu aos interesses da economia neoliberal. “Todos os focos sociais de responsabilidade estatal – violência, saúde, educação – foram repassados para a família, afinal, os interesses privados precisam vender escola, planos de saúde e lazer. Se o governo oferece tudo, quem vai comprar?”
Além do traquejo para tratar com grupos contrários à política adotada por sua gestão, a estratégia de Alves envolveu uma aproximação com a academia, destoando, mais uma vez, da postura adotada por políticos de mesma orientação. Para criar um arcabouço científico que pudesse respaldar a importância da família no caso dos direitos humanos, o ministério fomentou pesquisas sobre o assunto, financiou bolsas de estudo de pós-graduação e criou o Observatório Nacional da Família. Essa prática, contudo, não é inédita. Anteriormente, lembra Bortolin, também a Igreja Católica havia se aproximado dos cientistas em busca de embasamento técnico que pudesse servir de argumento em discussões sobre os limites da bioética e a descriminalização do aborto.
Ao investir na criação de um repertório técnico e científico para embasar a ideia de que a família tradicional é a responsável por gerir problemas e demandas sociais – algo amplamente difundido no governo Bolsonaro –, a atual senadora deu início a um movimento cujas reverberações para as políticas públicas e para o significado dos direitos humanos, no Brasil, ainda não foram mensuradas, alerta a cientista social. “Esse movimento marca uma nova forma de atuação dos parlamentares evangélicos. A fim de corroborar os preceitos difundidos nas narrativas criadas durante o governo Bolsonaro, foi elaborada uma série de iniciativas. Para que [esses preceitos] ganhem legitimidade e força no espaço público.”